Barandão agora caminhava apressadamente. O Sem-Pernas notou que ele se dirigia para o outro extremo do trapiche, onde a areia era mais fina ainda. Foi então pelo outro lado e chegou a tempo de ver Barandão que se encontrava com um vulto. Logo o reconheceu: era Almiro, um do grupo, de doze anos, gordo e preguiçoso. Deitaram-se juntos, o negro acariciando Admiro. O Sem-Pernas chegou a ouvir palavras. Um dizia: meu filhinho, meu filhinho. O Sem-Pernas recuou e a sua angústia cresceu. Todos procuravam um carinho, qualquer coisa fora daquela vida: o Professor naqueles livros que lia a noite toda, o Gato na cama de uma mulher da vida que lhe dava dinheiro, Pirulito na oração que o transfigurava, Barandão e Almiro no amor na areia do cais. O Sem-Pernas sentia que uma angústia o tomava e que era impassível dormir. Se dormisse viriam os maus sonhos da cadeia. Queria que aparecesse alguém a quem ele pudesse torturar com dichotes. Queria uma briga. Pensou em ir acender um fósforo na perna de um que dormisse. Mas quando olhou da porta do trapiche, sentiu somente pena e uma doida vontade de fugir. E saiu correndo pelo areal, correndo sem fito, fugindo da sua angústia.
Pedro Bala acordou com um ruído perto de si. Dormia de bruços e olhou por baixo dos braços. Viu que um menino se levantava e se aproximava cautelosamente do canto de Pirulito. Pedro Bala, no meio do sana em que estava, pensou, a princípio, que se tratasse de um caso de pederastia. E ficou atento para expulsar o passivo do grupo, pois uma das leis do grupo era que não admitiriam pederastas passivos. Mas acordou completamente e logo recordou que era impossível, pois Pirulito não era destas coisas. Devia se tratar de furto. Realmente o garoto já abria o baú de Pirulito. Pedro Bala se atirou em cima dele.
A luta foi rápida. Pirulito acordou, mas os demais dormiam.
- Tu tá roubando um companheiro?
O outro ficou calado, coçando o queixo ferido. Pedro Bala continuou:
- Amanhã tu vai embora... Não quero mais tu com a gente. Vai ficar com a gente de Ezequiel, que vive roubando uns dos outros.
- Eu só queria era ver...
- Que era que tu vinha ver com as mãos?
- Juro que era só para ver aquela medalha que ele tem.
- Desembucha esta história direito senão leva porrada.
Pirulito se meteu:
- Deixa ele, Pedro.
Era bem capaz de querer ver mesmo a medalha. É uma medalha que o padre José Pedro me deu.
- E isso mesmo - disse o menino, - eu só queria ver. Juro - mas tremia de medo. Sabia que a vida de um expulso dos Capitães da Areia ficava difícil.
Ou entrava para o grupo de Ezequiel, que vivi todo dia na cadeia, ou acabava no reformatório.
Pirulito intercedeu de novo e Pedro Bala voltou para perto do Professor. Então o menino disse com a voz ainda temendo:
- Vou contar pra você saber. Foi uma menina que eu vi hoje. Tava na Cidade de Palha. Eu tinha entrado na casa com ideia ti abafar um paletó, quando ela veio e ficou perguntando o que eu queria. Aí topamos a conversar. Eu disse que amanhã ia levar um presente pra ela. Porque foi boa, boa assim comigo, sabe? - e agora gritava parecia que tinha raiva.
Pirulito tomou a medalha que o padre lhe dera, ficou mirando. De repente estendeu para o menino:
- Tome. Dê a ela. Mas não conte a Pedro Bala.
Volta Seca entrou no trapiche quando a madrugada já ia alta. O cabelo de mulato sertanejo estava revolto. Calçava alpercatas como quando viera da caatinga. O seu rosto sombrio se projetou dentro do casarão. Passou por cima do corpo do negro João Grande. Cuspiu adiante, passou o pé em cima. Apertado no braço trazia um jornal.Olhou todo o salão procurando alguém. Segurou o jornal com as mãos grandes e calosas logo que distinguiu onde estava Professor. E sem se importar da hora tardias e dirigiu para lá e começou a chamá-lo:
- Professor... Professor...
- O que é? - Professor estava semiadormecido.
- Eu quero uma coisa.
Professor sentou-se. O rosto sombrio de Volta Seca estava meio invisível na escuridão.
- É tu, Volta Seca? Que é que tu quer?
- Quero que tu leia pra eu ouvir essa notícia de Lampião que o Diário traz. Tem um retrato.
- Deixa pra amanhã que eu leio.
- Lê hoje, que eu amanhã te ensino a imitar direitinho um canário.
O Professor buscou uma vela, acendeu, começou a ler a notícia do jornal. Lampião tinha entrado numa vila da Bahia, matara oito soldados, deflorara moças, saqueara os cofres da Prefeitura. O rosto sombrio de Volta Seca se iluminou. Sua boca apertada se abriu num sorriso. E ainda feliz deixou o Professor, que apagava a vela, e foi para o seu canto. Levava o jornal para cortar o retrato do grupo de Lampião. Dentro dele ia uma alegria de primavera.
Capítulo 3 - Ponto das Pitangueiras
Esperavam que o guarda andasse. Este demorou olhando o céu, mirando a rua deserta. O bonde desapareceu na curva. Era o último dos bondes da linha de Brotas naquela noite. O guarda acendeu um cigarro. Com o vento que fazia, gastou três fósforos. Depois suspendeu a gola da capa, pois havia um frio úmido que o vento trazia das chácaras onde balouçavam mangueiras e sapotizeiros. Os três meninos esperavam que o guarda andasse para poder atravessar de um lado para o outro da rua e entrar na travessa sem calçamento. O Querido-de-Deus não tinha podido vir. Toda a tarde tinha passado na Porta do Mar esperando o homem que não veio. Se ele tivesse vindo seria mais fácil, pois com o Querido-de-Deus ele não ia discutir, mesmo porque devia muita coisa ao capoeirista. Mas não tinha vindo, a informação fora errada, e o Querido-de-Deus já tinha uma viagem acertada para essa noite. Ia a Itaparica. Durante a tarde, num terreninho que havia no findo da Porta do Mar, fizeram treinos do jogo capoeira. O Gato prometia ser, com algum tempo, um lutador capaz de se pegar com o próprio Querido-de-Deus. Pedro Bala também tinha muito jeito. Dos três o menos ágil era o negro João Grande muito bom numa luta onde pudesse empregar sua enorme força física Assim mesmo aprendia o bastante para se livrar de um mais forte ele. Quando se cansaram passaram para a sala. Pediram quatro pi e o Gato sacou um baralho do bolso das calças. Um velho bar sebento, de canas muito grossas.O Querido-de-Deus afirmava o homem viria, o camarada que lhe dera a informação era um sujeito seguro. Era negócio para render muito e o Querido-de-Deus preferia chamar os Capitães da Areia, seus amigos, a um dos malandros do cais. Sabia que os Capitães da Areia valiam mais que muitos homens e tinham a boca calada. A Portado Mar estava quase deserto àquela hora. Somente dois marinheiros de um baiano bebiam cerveja ao fundo, conversando, O Gato pôs o baralho em cima da mesa e propôs: - Quem topa uma ronda?
O Querido-de-Deus pegou no baralho:
- Tá mais que marcado, seu Gato. Um baralhinho bem velho...
- Se tu tem outro eu não me importa.
- Não. Vamos com esse mesmo.
Começaram o jogo. O Gato descobria duas cartas na mesa, os outros apostavam numa, a banca ficava com a outra. A princípio Pedro Bala e o Querido-de-Deus ganharam.
João Grande não estava jogando conhecia demais o baralho do Gato, só fazia espiar, rindo com seus dentes alvos, quando o Querido-de-Deus dizia que estava com sorte neste dia porque era o dia de Xangô, seu santo. Sabia que a sorte seria só no princípio e que quando o Gato começasse a ganhar não pararia mais. Certo momento o Gato começou a ganhar. Quando ganhou a primeira vez, disse com uma voz meio triste:
- Também já era tempo. Tava com um peso da mãe!
João Grande abriu mais seu sorriso, O Gato ganhou de novo.
Pedro Bala se levantou, recolheu os níqueis que havia ganho. O Gato olhou desconfiado: Tu não vai botar nada agora?