— É — disse ele bondosamente, compreendendo "dever" e "giri", a mais japonesa das palavras, a mais importante das palavras, que resume uma herança tradicional e um modo de vida. — Tenho certeza de que cumpriu perfeitamente o seu giri. E qual sua mãe acha que é o seu giri, agora?
— Minha mãe está morta, tai-pan. Quando meu padrasto morreu, não quis mais viver. Tão logo me casei, ela subiu uma montanha e esquiou para dentro de um precipício.
— Terrível.
— Ah, não, tai-pan, ótimo. Ela morreu como quis morrer, na hora e local da sua escolha. Seu homem estava morto, eu estava segura, o que mais lhe restava fazer?
— Nada — falou, escutando a suavidade da voz dela, a sinceridade, a calma. A palavra japonesa "wa" veio à sua cabeça: "harmonia". "É isso o que esta moça tem", pensou. "Harmonia. Vai ver que é isso o que lhe dá tanta beleza. Ayeeyah, quem me dera adquirir tal wa!"
Um dos seus telefones tocou.
— Sim, Claudia?
— É Aleksei Travkin, tai-pan. Desculpe, ele disse que era importante.
— Obrigado. — Para a moça, falou: — Dê-me licença um momento. Sim, Aleksei?
— Desculpe incomodar, tai-pan, mas Johnny Moore está doente e não vai poder montar.
Johnny Moore era o principal jóquei deles.
A voz de Dunross tornou-se mais cortante.
— Ele me pareceu bem, hoje de manhã.
— Está com uma febre de trinta e nove graus. O médico disse que pode ser intoxicação alimentar.
— Acha que mexeram na comida dele, Aleksei?
— Não sei, tai-pan, só sei que ele hoje não vai poder montar.
Dunross hesitou. Sabia que era melhor do que os seus demais jóqueis, embora o peso extra que Noble Star teria que carregar pudesse prejudicar o animal. "Devo ou não devo?"
— Aleksei, escale Tom Wong. Decidiremos antes do páreo.
— Sim. Obrigado. Dunross desligou.
— Anjin é um nome curioso — falou. — Quer dizer "piloto", ou "navegador", não é?
— Conta a lenda da minha família que um dos nossos ancestrais era um inglês que se tornou samurai e conselheiro do xógum Yoshi Toranaga, há muitos, muitíssimos anos. Temos muitas histórias, mas dizem que primeiro ele teve um feudo em Hemi, perto de Yokohama, depois foi com a família para Nagasáqui, como inspetor-geral de todos os estrangeiros. — De novo o sorriso, o dar de ombros, e a ponta da língua umede-ceu-lhe os lábios. — É só uma lenda, tai-pan. Dizem que se casou com uma dama de alta linhagem chamada Riko. — A risadinha dela encheu o aposento. — Conhece os japoneses! Um gaijin, um estrangeiro, casando-se com uma dama de alta linhagem... como isso seria possível? Mas, de qualquer forma, é uma história agradável, e uma explicação para um nome, neh? — Ela se levantou, e ele também. — Preciso ir, agora. Sim?
"Não", ele teve vontade de dizer.
O Daimler preto parou diante do Vic, as armas da Struan discretamente pintadas nas portas. Casey e Bartlett esperavam no topo das escadas, Casey de vestido verde, constrangida num chapeuzinho verde, redondo e de copa baixa, e em suas luvas brancas, Bartlett de ombros largos, a gravata azul combinando com o terno bem-talhado. Ambos estavam de cara fechada.
O chofer aproximou-se deles.
— Sr. Bartlett?
— Sim. — Desceram as escadas e foram ao seu encontro. — É nosso motorista?
— Sou, sim, senhor. Desculpe, senhor, mas os dois estão trazendo os distintivos de ingresso e os convites?
— Sim, aqui estão — respondeu Casey.
— Ah, ótimo. Desculpe, mas sem eles... Meu nome é Lim. O... bem... o costume é os cavalheiros prenderem os dois distintivos à lapela, e as senhoras geralmente usam um alfinete.
— Você é quem manda — disse Bartlett. Casey entrou no banco de trás, e ele a seguiu. Sentaram-se bem afastados. Em silêncio, começaram a pregar os pequenos distintivos, numerados individualmente.
Com ar inexpressivo, Lim fechou a porta, notando a frieza, rindo intimamente. Fechou a divisória elétrica de vidro e ligou o microfone do intercomunicador.
— Se quiser falar comigo, senhor, basta usar o microfone acima do senhor.
Pelo espelho retrovisor, viu Bartlett ligar momentaneamente o microfone.
— Certo, Lim, obrigado.
Tão logo Lim entrou no meio do tráfego, enfiou a mão sob o painel e tocou num botão oculto. Prontamente, ouviu-se a voz de Bartlett pelo alto-falante.
— ...vai chover?
— Não sei, Linc. O rádio disse que sim, mas está todo mundo rezando para que não chova. — Uma hesitação, depois friamente: — Ainda acho que está errado.
Lim recostou-se, satisfeito. Seu irmão mais velho, de toda a confiança, Lim Chu, mordomo dos tai-pans da Casa Nobre, conseguira que um outro irmão mais moço, um excelente mecânico de rádio, instalasse aquele interruptor secundário para que ele pudesse escutar o que diziam os passageiros. Custara muito caro, mas era para proteger o tai-pan, e o Irmão Mais Velho Lim ordenara que nunca devia ser usado quando o tai-pan estivesse no carro. Nunca, nunca, nunca. E nunca o fora. Ainda. Lim sentia-se nauseado à idéia de ser apanhado, mas a vontade deles de saber... naturalmente para proteger... superava sua ansiedade. "Oh, oh, oh", casquinava, "a Pêlos Púbicos Dourados está mesmo uma fera!"
Casey estava fumegando.
— Vamos parar com isso, tá legal? Desde a hora do café que você está parecendo um urso com dor no rabo!
— E você, então? — Bartlett olhou feio para ela. — Vamos ficar com o Gornt... como eu quero.
— Esse negócio é meu, você disse isso cinqüenta vezes. Você prometeu, sempre escutou antes. Pombas, estamos do mesmo lado, só estou tentando protegê-lo. Sei que você está errado.
— Você pensa que estou errado. E tudo por causa da Orlanda!
— Isso é besteira! Já expliquei meus motivos cinqüenta vezes. Se o Ian conseguir sair da armadilha, para nós será muito melhor ficar com ele do que com Gornt.
A fisionomia de Bartlett estava fria.
— Nunca tivemos uma briga antes, Casey, mas se quiser pôr suas ações em votação, farei o mesmo com as minhas, e você estará com o rabo na seringa antes de poder contar até dez!
O coração de Casey batia fortemente. Desde a reunião com Seymour Steigler, na hora do café, que o dia estava pesadíssimo. Bartlett não arredava pé da idéia de que, para ele, ficar com Gornt era o melhor, e nada que ela dissesse o faria mudar de opinião. Depois de uma hora de tentativas, ela encerrara a reunião e fora cuidar de uma pilha de telex chegados durante a noite. Depois, lembrando-se subitamente, em cima da hora, saíra em pânico para ir comprar o chapéu.
Quando se encontrara com Bartlett no saguão, cheia de expectativa, querendo que ele gostasse do chapéu, começara a fazer as pazes com ele, mas ele a interrompera.
— Esqueça — dissera. — Não estamos de acordo. E daí? Ela esperara e esperara, mas ele nem percebera.
— O que você acha?
— Já lhe disse. Gornt é melhor para nós.
— Estou falando do meu chapéu. Notara o olhar vazio dele.
— Ah, então é isso o que está diferente. É, está legal! Casey sentira vontade de arrancar o chapéu e jogá-lo em cima dele.
— É parisiense — dissera, meio sem jeito. — O convite diz chapéu e luvas, lembra? É uma baboseira, mas o Ian disse que as senhoras...
— O que a faz pensar que ele vai conseguir sair da armadilha?
— Ele é esperto. E é o tai-pan.
— Gornt está levando a melhor.
— E o que parece. Bem, vamos esquecer o assunto, por enquanto. É melhor esperarmos Iá fora. O carro vai chegar exatamente ao meio-dia.