— Estamos ambos vivos, ambos inteiros, mais ou menos.
— Mais ou menos, sr. Marlowe. Concordo. A guerra é um meio curioso de vida. — Toda tirava baforadas do cigarro. — Qualquer hora dessas, se lhe agradasse e não o magoasse, gostaria de conversar com o senhor sobre Changi, suas lições e as nossas guerras. Pode ser?
— Claro.
— Passarei alguns dias aqui — disse Toda. — Estou no Mandarim. Volto na semana que vem. Um almoço, ou jantar, quem sabe?
— Obrigado. Ligarei para o senhor. Se não desta vez, quem sabe da próxima. Algum dia estarei em Tóquio.
Após uma pausa, o japonês disse:
— Não precisamos discutir o seu Changi, se preferir. Gostaria de conhecê-lo melhor. A Inglaterra e o Japão têm muita coisa em comum. Bem, se me dá licença agora, vou fazer a minha aposta.
Fez uma reverência polida e se afastou. Casey sorvia o seu café.
— Foi muito difícil para você? Ser educado?
— Ah, não, Casey, de maneira alguma. Agora somos iguais, ele e eu, qualquer japonês. Os japoneses e os coreanos... o que eu odiava era os que tinham baionetas e balas, quando eu não tinha nem uma coisa nem outra. — Ela notou que ele enxugava o suor, o seu sorriso retorcido. — Mahlu, não estava preparado para encontrar um deles aqui.
— Mahlu? O que é isso, cantonense?
— Malaio. Significa "envergonhado".
Sorriu consigo mesmo. Era uma contração de "puki mahlu". "Mahlu", envergonhado, "puki", uma Ravina Dourada. Os malaios emprestam sentimentos a essa parte da mulher: fome, tristeza, bondade, voracidade, hesitação, vergonha, raiva... toda e qualquer coisa.
— Não precisa sentir vergonha, Peter — disse ela, sem entender. — Admira-me ver você falar com qualquer um deles, depois daquele horror do campo de prisioneiros. Ah, gostei mesmo do livro. Não é maravilhoso que ele também o tenha lido?
— É. Isso me abalou as estruturas.
— Posso lhe fazer uma pergunta?
— Qual?
— Você disse que Changi era a gênese. O que quis dizer com isso?
— Changi mudou todo mundo, mudou os valores permanentemente — disse ele, soltando um suspiro. — Por exemplo, deu-nos uma espécie de torpor frente à morte... nós a vimos demais, para que ela tenha para nós o mesmo significado que para o pessoal de fora, a gente normal. Somos uma geração de dinossauros, os poucos que sobrevivemos. Acredito que qualquer um que vá para a guerra, qualquer guerra, passe a enxergar a vida com olhos diferentes, se conseguir sair dela inteiro.
— O que você enxerga?
— Um monte de baboseiras que é idolatrado como a essência e o objetivo da existência. Tanta coisa na vida "normal, civilizada" é baboseira, que você nem pode imaginar! Para nós, os "ex-hóspedes" de Changi... nós temos sorte, estamos purificados, sabemos o que a vida realmente é. O que assusta você não me assusta, e você daria risada do que me assusta.
— Como, por exemplo? Abriu um sorriso.
— Chega de falar em mim e no meu carma. Tenho uma "barbada" para o... — Interrompeu-se, e ficou olhando fixamente para um ponto. — Meu Deus, quem é aquela?
— Riko Gresserhoff. Ela é japonesa — falou Casey, rindo.
— Qual deles é o sr. Gresserhoff?
— Ela é viúva.
— Aleluia!
Ficaram olhando enquanto ela se dirigia para o terraço.
— Não se atreva, Peter!
A voz dele ficou imponente:
— Sou um escritor! É apenas uma questão de pesquisa!
— Pois sim!
— Tem razão.
— Peter, dizem que todos os primeiros romances são autobiográficos. Quem era você, no livro?
— O herói, é claro.
— O Rei? O comerciante americano?
— Ah, não, ele não. E agora chega mesmo de falar no meu passado. Vamos falar de você. Tem certeza de que está bem?
Manteve os olhos fitos nos dela, como que forçando-a a contar a verdade.
— Como?
— Correu um boato de que você andou chorando ontem à noite.
— Bobagem.
— É mesmo?
Ela lhe devolveu o olhar, sabendo que ele enxergava o seu íntimo.
— Claro. Estou ótima. — Uma hesitação. — Qualquer hora dessas, qualquer hora dessas posso precisar de um favor.
— É? — Franziu o cenho. — Estou no reservado de McBride, dois depois deste, descendo o corredor. Tudo bem se você quiser ir me visitar. — Deu uma olhada para Riko. Seu prazer desapareceu. Agora ela estava conversando com Robin Grey e Julian Broadhurst, os deputados trabalhistas. — Acho que hoje não é o meu dia — resmungou. — Volto depois, tenho que ir fazer a aposta. Até logo, Casey.
— Qual a "barbada"?
— Número 7, Winner's Delight.
Winner's Delight, um azarão, ganhou do favorito, Excellent Day, por meio corpo. Satisfeitíssima consigo mesma, Casey entrou na fila diante do guichê pagador do vencedor, agarrando os bilhetes premiados, consciente dos olhares invejosos dos que caminhavam pelo corredor diante das tribunas particulares. Apostadores agoniados já estavam deixando o dinheiro nos outros guichês para o segundo páreo, que era a primeira parte da loteria dupla. Para ganhar uma loteria, tinham que prever o primeiro e o segundo lugares, em qualquer ordem. A dupla juntava o segundo páreo com o quinto, que era o grande páreo do dia. O prêmio da loteria dupla seria imenso, as probabilidades de se acertar quatro cavalos, muito poucas. A aposta mínima era de cinco HK. Não havia máxima.
— Por que motivo, Linc? — perguntara pouco antes da corrida, no balcão, virando a cabeça para espiar os cavalos na linha de largada, todos os yan de Hong Kong com seus binóculos em foco.
— Olhe só para o totalizador. — Os números eletrônicos piscavam e mudavam à medida que eram feitas as apostas nos diferentes cavalos, reduzindo as probabilidades, imobilizando-se pouco antes da largada. — Olhe só para o dinheiro investido nesse páreo, Casey! Mais de três milhões e meio de dólares de Hong Kong. É quase um dólar por cada homem, mulher e criança em Hong Kong, e é apenas o primeiro páreo. Esse deve ser o hipódromo mais rico do mundo. Essa turma é maluca por jogo!
Um urro imenso subiu da multidão quando foi aberto o portão de largada. Olhara para ele e sorrira.
— Tudo bem?
— Claro. E com você?
— Ah, tudo.
"É, tudo bem comigo", pensou de novo, esperando a sua vez de pegar o dinheiro. "Sou uma vencedora!" Riu alto.
— Oh, alô, Casey! Ah, também ganhou?
— Hem? Ah, alô, Quillan, ganhei, sim. — Saiu do seu lugar na fila para juntar-se a Gornt, os cutros todos estranhos para ela. — Só tinha apostado dez nela, mas ganhei.
— A quantia não importa; ganhar, sim — Gornt sorriu. — Gosto do seu chapéu.
— Obrigada.
"Curioso", pensou, "tanto o Quillan quanto o Ian o haviam elogiado imediatamente. Maldito Linc!"
— É muita sorte escolher o primeiro vencedor, na- primeira vez que se vai a um hipódromo.
— Ah, mas não escolhi. Foi o Peter que me deu a dica. Peter Marlowe.
— Ah, sei, Marlowe. — Viu os olhos dele se modificarem ligeiramente. — Ainda está de pé o nosso programa para amanhã?
— Ah, está, sim. Se o tempo permitir.
— Mesmo que esteja chovendo. Almoço, pelo menos.
— Ótimo. No embarcadouro, às dez em ponto. Qual é o seu reservado?
Ela notou uma mudança instantânea que ele tentou disfarçar.
— Não tenho. Não sou um dos administradores. Ainda. Sou um convidado praticamente permanente no reservado do Blacs, e de vez em quando peço emprestado o lugar inteiro para uma festa. Fica descendo o corredor. Quer dar uma passa-dinha Iá? O Blacs é um excelente banco, e...
— Ah, mas não é tão bom quanto o Vic — disse Johnjohn, Simpaticamente, ao passar por eles. — Não acredite numa palavra do que ele diz, Casey. Parabéns! Dá sorte ganhar o primeiro. Vejo vocês dois mais tarde.
Casey ficou olhando para ele, pensativa. Depois, falou:
— E quanto à corrida aos bancos, Quillan? Ninguém parece estar se importando... é como se não estivesse acontecendo, o mercado de valores não estivesse desabando, não houvesse um desastre iminente.