A chuva ficou mais forte, mas ele não a sentia, o calor dos lucros no bolso tornando mais leves os seus passos. Endireitou os ombros. "Seja forte, seja sensato", ordenou a si mesmo. "Esta noite preciso estar alerta. Talvez peçam a minha opinião. Sei que o superintendente comunista Brian Kwok é um mentiroso aqui e ali, e está exagerando. Quanto às armas atômicas, o que há de tão importante nelas? Claro que o Reino Médio tem suas armas atômicas. Qualquer idiota sabe o que vem se passando há anos, em Sin-kiang, perto das praias do lago Bos-teng-hu. E, naturalmente, logo teremos os nossos foguetes e satélites. Claro! Não somos civilizados? Não inventamos a pólvora e os foguetes, mas os deixamos de lado há milênios, por serem bárbaros?"
Por todo o hipódromo, do outro lado da cerca, as faxineiras varriam os restos molhados deixados por milhares de pessoas, peneirando pacientemente o lixo, com cuidado, para ver se descobriam uma moeda ou um anel perdidos, uma caneta ou garrafas que valessem uma única moeda de cobre. Agachado perto de um monte de latas de lixo, ao abrigo da chuva, estava um homem.
— Vamos, meu velho, não pode dormir aí! — falou uma das faxineiras, não sem gentileza, sacudindo-o. — Está na hora de ir para casa!
Os olhos do velho piscaram por um instante. Ele começou a se levantar, mas parou, soltou um grande suspiro e desabou como uma boneca de pano.
— Ayeeyah — murmurou Yang Um Dente Só. Ela já vira a morte muitas vezes nos seus setenta anos de vida para reconhecê-la imediatamente. — Ei, Irmã Mais Moça! — chamou educadamente a amiga e segundo membro da equipe. — Venha cá! Este velho está morto.
A amiga dela tinha sessenta e quatro anos, era curvada e enrugada, mas igualmente forte, e também xangaiense. Saiu da chuva e veio espiar.
— Parece um mendigo.
— É. É melhor contarmos ao capataz. — Yang Um Dente Só ajoelhou-se e revistou com cuidado seus bolsos rasgados. Havia três HK em trocados, nada mais. — Não é muito — falou. — Não importa.
Dividiu as moedas irmãmente. Ao longo dos anos sempre haviam dividido o que encontravam.
— O que é aquilo na mão esquerda dele? — perguntou a outra mulher. Um Dente Só abriu a mão fechada como garra.
— Só uns bilhetes. — Olhou para eles, levou-os para bem junto dos olhos e folheou-os. — É a loteria dupla... — começou, depois casquinou. — Eeee, o pobre idiota acertou a primeira parte e perdeu a segunda... e escolheu Butterscotch Lass!
As duas mulheres riram histericamente ante a traquina-gem dos deuses.
— Foi isso o que deu o treco no velho... teria dado em mim! Ayeeyah, estar tão perto e tão longe, Irmã Mais Velha!
— Joss. — Yang Um Dente Só casquinou de novo, e jogou os bilhetes numa lata de lixo. — Os deuses são os deuses, e os homens são os homens, mas, eee, dá para se imaginar por que o velho morreu. Eu também teria morrido! — As duas velhas riram de novo, o azar machucando-as, e a mais velha esfregou o peito para suavizar a dor. — Ayeeyah, tenho que ir a um médico. Vá e conte ao capataz sobre ele, Irmã Mais Moça. Mas como estou cansada hoje! Um azar tão grande, ele estava tão perto de ser um milionário, mas agora? Joss! Vá contar ao capataz. Hoje estou cansada — falou de novo, apoiada no anci-nho, a voz trêmula.
A outra mulher se afastou, admirando-se dos deuses, como dão e tiram as coisas rapidamente... se é que existem mesmo, não pôde deixar de pensar. Ah, joss!
Cansadamente, Yang Um Dente Só continuou o trabalho, a cabeça doendo, mas no momento em que teve certeza de estar sozinha, e não ser observada, correu para a lata de lixo e retirou de Iá os bilhetes, desesperadamente, o coração batendo como nunca na vida. Alucinada, verificou se seus olhos não a haviam enganado, e se os números estavam corretos. Mas não havia erro. Cada um dos bilhetes era vencedor. Igualmente alucinada, ela os enfiou no bolso, depois certificou-se de que não havia deixado nenhum no lixo. Rapidamente, empilhou mais lixo por cima, ergueu a lata e esvaziou-a dentro de outra, e o tempo todo sua mente gritava: "Amanhã posso resgatar os bilhetes, tenho três dias para resgatá-los! Oh, que todos os deuses sejam abençoados, estou rica, rica, rica! Aqui deve haver cem ou duzentos bilhetes de cinco HK, e cada um paga duzentos e sessenta e cinco HK... se houver cem bilhetes, isso significa vinte e seis mil e quinhentos HK, se houver duzentos, cinqüenta e três mil HK..."
Sentindo-se tonta, agachou-se ao lado do cadáver, apoiando-se na parede, sem perceber. Sabia que não ousaria contar os bilhetes agora, não havia tempo. Cada segundo era vital. Tinha que se preparar.
— Tome cuidado, velha tola! — murmurou em voz alta. Depois, quase entrou em pânico de novo. "Pare de falar em voz alta! Cuidado, sua velha tola, ou a Irmã Mais Moça vai suspeitar... Ai, ai, ai, será que está contando ao capataz do que está suspeitando? Ah, o que vou fazer? A sorte é minha, fui eu que achei o velho... ayeeyah, o que devo fazer? Talvez me revistem. Se me virem deste jeito, vão sem dúvida desconfiar..."
Sua cabeça doía terrivelmente, e uma onda de náusea a percorreu. Havia alguns banheiros ali por perto. Pôs-se de pé com esforço e caminhou até eles. Atrás dela, outras faxineiras varriam e limpavam. No dia seguinte, todas voltariam, pois ainda havia muito o que fazer. O turno dela recomeçaria às nove da manhã. No banheiro vazio, pegou os bilhetes, os dedos trêmulos, enrolou-os num pedaço de pano, achou um tijolo solto na parede e colocou-os atrás do tijolo.
Logo que chegou Iá fora, em segurança, começou a respirar. Quando o capataz voltou com a outra velha, olhou para o homem, revistou os bolsos dele com muito cuidado e encontrou um pedaço de papel prateado que elas tinham deixado passar. Dentro dele havia uma pitada de Pó Branco.
— Vai render dois HK — disse ele, sabendo que valia seis HK. — Vamos rachar, setenta por cento para mim e trinta para vocês duas.
Para manter as aparências, Um Dente Só discutiu, e acabaram concordando em que ele tentaria obter três HK pelo pó, e racharia sessenta por cento para ele e quarenta para elas. Satisfeito, ele foi embora.
Quando ficaram sozinhas de novo, a mulher mais moça começou a peneirar o lixo.
— O que está fazendo? — quis saber Um Dente Só.
— Só queria examinar os bilhetes, Irmã Mais Velha. Seus olhos já não são tão bons.
— Fique à vontade — falou Um Dente Só, dando de ombros. — Já vasculhei tudo isso aqui. Agora vou para Iá.
Seu dedo nodoso apontou para uma nova fonte despercebida de lixo virgem sob uma fileira de assentos. A outra mulher hesitou, depois a seguiu, e Um Dente Só quase casquinou de alegria, sabendo que estava salva. "Amanhã, eu volto, reclamando de dor de barriga. Posso apanhar a minha fortuna e ir para casa. Agora, o que vou fazer com a minha fortuna?
"Primeiro, o sinal para dois vestidos de baile quai loh para a Terceira Neta, em troca de metade dos ganhos dela, no primeiro ano. Dará uma bela prostituta no Cabaré Boa Sorte. A seguir, o Segundo Filho deixará de ser cule no prédio em construção na Kotewall Road. Ele, o Quinto Sobrinho e o Segundo Neto vão se tornar construtores, e dentro de uma semana daremos o sinal para a compra de um lote de terra e começaremos a construir um prédio..."
— Está parecendo muito feliz, Irmã Mais Velha.
— E estou, Irmã Mais Moça. Meus ossos doem, sinto a sezão, como sempre, estou com dor de barriga, mas estou viva, e o velho está morto. É uma lição dos deuses. Que todos os deuses sejam testemunhas, logo que o vi, pela primeira vez, pensei que era o meu marido, que morreu na nossa fuga de Xangai, há quinze anos. Pensei que estava vendo um fantasma! Quase morri também, pois o velho parecia gêmeo dele!
— Ayeeyah, que terrível! Que horrível! Fantasmas! Todos os deuses nos protejam dos fantasmas!