"Ele era inglês?"
Ela se fizera essa pergunta muitas vezes. "Não que o alemão dele não fosse fluente. Eram as suas atitudes. As atitudes dele não eram alemãs, como as minhas não são japonesas. Ou são?
"Não sei. Mas agora vou poder descobrir."
Ele jamais lhe contara que tipo de trabalho fazia, e ela jamais lhe perguntara. Depois de Viena, fora fácil adivinhar que era clandestino e estava ligado, de alguma forma, ao crime ou à espionagem internacional. Hans não era do tipo de se meter com crime.
Então, dali em diante, ela fora ainda mais cautelosa. Uma ou duas vezes, em Zurique e quando foram esquiar, ela desconfiara de que estavam sendo vigiados, mas ele dissera que não se preocupasse.
— Mas esteja preparada para o caso de acidentes. Mantenha tudo de valor, os papéis particulares, o passaporte e a certidão de nascimento na maleta de viagem, Ri-chan — dissera, usando o apelido dela. — Apenas por via das dúvidas.
Com a morte do marido, e com suas instruções quase todas cumpridas, o dinheiro, o telefonema e o chamado do tai-pan, tudo seria novo. Agora ela podia recomeçar. Tinha vinte e quatro anos. O passado era passado, e carma era carma. O dinheiro do tai-pan seria mais do que suficiente para as necessidades dela durante anos.
Na sua noite de núpcias, o marido lhe dissera:
— Se qualquer coisa me acontecer, você receberá um telefonema de um homem chamado Kiernan. Corte as linhas telefônicas como vou lhe mostrar, e deixe Zurique imediatamente. Deixe tudo para trás, exceto as roupas do corpo e a maleta de viagem. Vá para Genebra. Tome esta chave. Ela abrirá um cofre individual no Banco Suíço em Genebra, na Rue Charles. Nele há dinheiro e algumas cartas. Siga as instruções exatamente, minha querida. Oh, como eu a amo! Deixe tudo. Faça exatamente o que eu disse...
E ela o fizera. Exatamente. Era o seu giri.
Cortara os fios telefônicos com a tesoura, como ele lhe ensinara, logo atrás da caixa presa à parede, para que o corte mal fosse notado. Em Genebra, no banco, havia uma carta com instruções, dez mil dólares em dinheiro vivo no cofre individual, um novo passaporte suíço, carimbado, com a foto dela, mas um novo nome, um novo aniversário e uma nova certidão de nascimento, que dizia que ela nascera em Berna havia vinte e três anos. Gostara do nome novo que ele escolhera para ela, e lembrava-se de como, na segurança do seu quarto de hotel que dava para o lindo lago, chorara por ele.
No cofre individual também havia uma caderneta de poupança no seu novo nome, no valor de vinte mil dólares, e uma chave, um endereço e um título de propriedade. O título era de um pequeno chalé à beira do lago, isolado, mobiliado e totalmente pago, com uma zeladora que a conhecia apenas pelo novo nome, e que achava que ela fosse uma viúva que estivera no exterior... o título estava registrado no seu novo nome, embora o chalé tivesse sido comprado há quatro anos, alguns dias antes do seu casamento.
— Ah, patroa, que bom que a senhora finalmente veio para casa! Viajar para todos esses lugares estrangeiros deve ser muito cansativo — disse a velha simples e simpática, à guisa de cumprimento. — Ah, no último ano a sua casa foi alugada para um inglês tão tranqüilo e encantador! Pagava pontualmente todos os meses. Eis os recibos. Talvez ele volte esse ano, disse ele, talvez não. Seu agente fica na Avenue Firnet...
Mais tarde, caminhando pela linda casa, o lago vasto e limpo no bojo das montanhas, a casa limpa como as montanhas, quadros nas paredes, flores nos vasos, três dormitórios, uma sala e varandas, pequenina mas perfeita para ela, o jardim uma jóia, ela entrara no dormitório principal. Em meio a um caleidoscópio de pequenos quadros de diversos formatos e tamanhos numa das paredes, havia o que parecia ser parte de uma velha carta numa moldura com vidro, o papel já amarelecendo. Ela reconheceu a letra dele. Estava escrita em inglês.
"Tantas horas felizes nos seus braços, Ri-chan, tantos dias felizes na sua companhia! Como lhe dizer que a amo? Esqueça-me, eu jamais a esquecerei. Como imploro a Deus que lhe conceda dez mil dias por cada um dos meus, minha querida, minha querida, minha querida."
A imensa cama de casal estava quase convexa devido ao edredão grosso e multicolorido, as janelas abertas para o ar suave, cheio dos perfumes do final do verão, a neve cobrindo de leve os topos das montanhas. Ela chorara novamente, o chalé acolhendo-a.
Poucas horas depois de sua chegada, Dunross a chamara, e ela havia tomado o primeiro jato. E agora estava ali, a maior parte do seu trabalho terminado, nenhuma necessidade de voltar, o passado obliterado... se ela assim o desejasse. Parecia-lhe que o novo passaporte era genuíno, assim como a certidão de nascimento. Não havia nenhum motivo para voltar à Suíça... exceto pelo chalé. E o quadro.
Ela o deixara na parede, intocado. E resolvera que, enquanto fosse dona da casa, o quadro ficaria onde ele o colocara. Para sempre.
76
17h10m
Orlanda dirigia o pequeno carro, Bartlett ao seu lado, com o braço apoiado de leve em seus ombros. Tinham acabado de cruzar a garganta, vindos de Aberdeen, e agora, ainda entre nuvens, desciam a montanha em Mid Leveis, em direção à casa dela, no Rose Court. Estavam felizes juntos, cheios de expectativa. Depois do almoço, haviam atravessado para Hong Kong, e ela guiara até Shek-O, na ponta sudeste da ilha, para mostrar-lhe onde alguns dos tai-pans tinham casas de fim de semana. A paisagem era ondulante, o local escassamente povoado, colinas, ravinas, o mar sempre perto, pedras e rochedos íngremes.
De Shek-O haviam continuado pela estrada meridional que se enroscava e retorcia até chegarem a Repulse Bay, onde ela parará no maravilhoso hotel para tomarem chá com bolinhos, na varanda, olhando para o mar. Depois tinham seguido, passando por Deepwater Cove até Discovery Bay, onde ela parará de novo num mirante.
— Olhe ali, Linc, aquele é o Castelo Tok! — O Castelo Tok era uma casa imensa e incongruente que parecia um castelo normando e ficava encarapitada nos rochedos, bem acima da água. — Durante a guerra, os canadenses, soldados canadenses, que defendiam esta parte da ilha contra os invasores japoneses, recuaram até o Castelo Tok, para uma resistência final. Quando foram dominados e se renderam, havia cerca de duzentos e cinqüenta deles ainda vivos. Os japoneses os encurralaram todos no terraço do Castelo Tok e os fizeram saltar, à ponta de uma baioneta, pelo muro do terraço até as pedras Iá embaixo.
— Meu Deus!
A queda era de uns trinta metros, ou mais.
— Todos. Os feridos, os... outros, todos.
Ele notara que ela estremecera, e imediatamente estendera a mão para tocá-la.
— Não ligue, Orlanda, faz muito tempo.
— Não, não, absolutamente. Infelizmente a história e a guerra ainda permanecem conosco, Linc. Sempre permanecerão. À noite os fantasmas caminham por esses terraços.
— Você crê nisso?
— Sim, claro que sim.
Lembrou-se de como olhara para a casa sombria, o mar batendo contra as rochas Iá embaixo, o perfume dela cercando-o enquanto ela se recostava nele, sentindo-lhe o calor, e de como se sentira feliz por estar vivo e não ser um daqueles soldados.
— O seu Castelo Tok parece coisa saída de filme. Já esteve Iá dentro?
— Não. Mas dizem que há armaduras e calabouços, e que é uma cópia de um castelo de verdade na França. O dono era o velho Sir Cha-sen Tok, Tok Construtor. Ele era um multi-milionário que ficou rico com estanho. Dizem que, quando fez cinqüenta anos, um vidente lhe disse que começasse a construir uma "grande mansão", caso contrário morreria. E assim ele começou a construir, e construiu dúzias de casas, todas mansões, três em Hong Kong, uma perto de Sha Tin, e muitas na Malásia. O Castelo Tok foi a última que construiu. Estava com oitenta e nove anos, mas disposto e sadio como um homem de meia-idade. Mas, ao que consta, depois do Castelo Tok ele disse "agora chega", e parou de construir. Dentro de um mês estava morto, e a profecia do vidente se cumpriu.