— Também ouvi esse boato. É. Tomara Deus... ora, deixe pra lá. — Armstrong estendeu a mão para a pasta, hesitou, depois se levantou e se dirigiu para o telefone. — As primeiras coisas em primeiro lugar — disse ao amigo chinês, com um sorriso sardônico. — Primeiro vamos arrochar alguns VIPS. — Ligou para o QG da polícia, em Kowloon. — Armstrong... ligue-me com o sargento comissionado Tang-po, por favor.
— Boa noite, senhor. Sim, senhor? — a voz do sargento comissionado Tang-po era cálida e amistosa.
— Boa noite, sargento — respondeu ele, docemente. — Preciso de informações. Preciso saber a quem aquelas armas eram destinadas. Preciso saber quem são os raptores de John Chen. Quero John Chen, ou o corpo dele, de volta em três dias. E quero o Lobisomem, ou Lobisomens, atrás das grades, rapidinho.
Fez-se uma ligeira pausa.
— Sim, senhor.
— Por favor, espalhe a notícia. O Grande Pai Branco está muito zangado, de verdade. E quando ele fica só um pouquinho zangado, os superintendentes são enviados para outros comandos, e os inspetores também... até os sargentos, mesmo os sargentos comissionados de primeira classe. Alguns chegam a ser rebaixados para simples guardas e mandados para a fronteira. Alguns podem até ser exonerados ou deportados ou mandados para a prisão. Certo?
Fez-se uma pausa maior.
— Sim, senhor.
— E quando ele está realmente muito zangado, os homens sensatos fogem, antes que o combate à corrupção desabe sobre os culpados, e até sobre os inocentes.
Outra pausa.
— Sim, senhor. Vou espalhar a notícia, senhor, imediatamente. Sim, imediatamente.
— Obrigado, sargento. O Grande Pai Branco está muito zangado, de verdade. Ah, mais uma coisa. — A voz dele tornou-se mais seca. — Talvez você deva pedir ajuda aos seus irmãos sargentos. Eles certamente entenderão, o meu modesto problema é deles também. — Passou a falar em cantonense. — Quando os Dragões arrotam, Hong Kong inteira defeca. Heya?
Uma pausa mais longa.
— Cuidarei do caso, senhor.
— Obrigado.
Armstrong pôs o fone no gancho. Brian Kwok sorriu.
— Isso vai lhe contrair alguns músculos do esfíncter.
O inglês assentiu e sentou-se de novo, mas sua fisionomia continuava dura.
— Não gosto de apelar para isso com freqüência... para falar a verdade, é a segunda vez que o faço, mas não tenho opção. Ele deixou isso bem claro, assim como o Velho. É melhor você fazer o mesmo com suas fontes.
— Claro. "Quando os Dragões arrotam..." Estava fazendo trocadilho com os Cinco Dragões lendários?
— Estava.
Agora, o belo rosto de Brian Kwok se acomodara num molde — frios olhos negros na pele dourada, o queixo quadrado quase imberbe.
— Tang-po é um deles?
— Não sei, ao certo. Sempre achei que era, embora sem nada em que me basear. Não, não estou certo, Brian. Ele é?
— Não sei.
— Bem, não importa que seja ou não. A notícia chegará a um deles, e é só o que me interessa. Pessoalmente, estou convencido de que os Cinco Dragões existem, que são cinco sargentos chineses, talvez até sargentos de polícia, que controlam toda a jogatina ilegal de Hong Kong, e provavelmente, possivelmente, redes de proteção, alguns cabarés e garotas... cinco entre onze. Cinco sargentos superiores entre onze possibilidades. Hem?
— Eu diria que os Cinco Dragões são reais, Robert, talvez haja mais, talvez menos, mas toda a jogatina de rua é controlada pela polícia.
— Provavelmente controlada por membros chineses da nossa Real Força Policial, meu rapaz — disse Armstrong, corrigindo-o. — Ainda não temos prova concreta alguma... e há anos que estamos atrás dela. Duvido que jamais consigamos provar a coisa. — Abriu um sorriso. — Talvez você consiga, quando for comissário assistente.
— Corta essa, Robert, pelo amor de Deus.
— Diabos, você tem apenas trinta e nove anos, tem o curso especial de figurão da Escola do Estado-Maior, e já é superintendente. Aposto cem contra dez que você vai terminar nesse posto.
— Fechado.
— Devia ter apostado cem mil — falou Armstrong, fingindo azedume. — Aí você não teria aceito.
— Experimente para ver.
— Não posso. Quem sou eu para perder todo esse tutu? Você pode ser morto, ou coisa parecida, neste ano ou no próximo, ou pedir demissão... mas se nada disso acontecer, vai para o posto antes de se aposentar, presumindo-se que queira chegar lá.
— Nós dois.
— Eu não... sou um inglês fanático demais. — Armstrong bateu-lhe nas costas, satisfeito. — Vai ser um grande dia. Mas você também não vai acabar com os Dragões... mesmo que consiga provar a coisa, do que duvido.
— Não?
— Não. Pouco se me dá a jogatina. Todos os chineses querem jogar, e se alguns sargentos chineses da polícia controlam a jogatina ilegal de rua, na sua maior parte ela será limpa e justa, embora ilegal pra caramba. Se eles não a controlarem, as tríades o farão, e então os pequenos grupos de sacanas nojentos que conseguimos manter afastados com tanto cuidado vão se unir de novo num único e grande tong, e aí teremos um problema de verdade. Você me conhece, rapaz, não sou cara de balançar nenhum coreto, e é por isso que não chegarei a comissário assistente. Gosto do status quo. Os Dragões controlam a jogatina, e assim mantemos as tríades divididas... e enquanto a polícia se mantiver unida e for a tríade mais forte de Hong Kong, sempre teremos paz nas ruas, uma população bem-comportada e quase nenhum crime, crime violento.
Brian Kwok fitou-o.
— Você acredita mesmo nisso, não é?
— Acredito. No momento, de uma maneira meio estranha, os Dragões são um dos nossos esteios mais fortes. Sejamos realistas, Brian, só os chineses podem governar os chineses. O status quo também é bom para eles... o crime violento é ruim. E assim, obtemos ajuda quando precisamos, e às vezes, ajuda que nós, demônios estrangeiros, provavelmente não conseguiríamos obter de outra maneira. Não sou favorável à corrupção deles, ou à infração da lei, de modo algum... ou ao suborno e a todos os outros golpes baixos que temos que dar, ou aos delatores. Mas qual a força policial do mundo que pode operar sem sujar as mãos algumas vezes, e sem os alcagüetes filhos da mãe? Assim, o mal que os Dragões representam preenche uma necessidade existente aqui, acho eu. Hong Kong é a China, e a China é um caso especial. Enquanto for só o jogo ilegal, pouco se me dá. Se estivesse nas minhas mãos, tornaria o jogo legal hoje mesmo, mas arrasaria com qualquer um por rede de proteção a lojas, cabarés, garotas, ou seja lá o que for. Não suporto cafetão, como bem sabe... O jogo já é outra história. Como se pode impedir que um chinês jogue? Não se pode. Assim, tornemo-lo legal, e deixemos todo mundo feliz. Há quantos anos a polícia de Hong Kong vem aconselhando isso, e todo ano a proposta é rejeitada? Que eu saiba, vinte anos. Mas, ah, não, e por quê? Macau. Claro como a água. A boa e velha Macau portuguesa se alimenta do jogo ilegal e do contrabando de ouro, e é isso o que a mantém viva, e nós não podemos nos dar ao luxo, nós, o Reino Unido, não podemos nos dar ao luxo de deixar o nosso velho aliado entrar pelo cano.
— Robert Armstrong para primeiro-ministro!
— Vá tomar no rabo! Mas é verdade. O que recolhemos com o jogo ilegal é o nosso único dinheiro para suborno... um bocado da grana vai para o pagamento da nossa rede de informantes. Onde mais podemos conseguir esse dinheiro? Com o nosso governo agradecido? Não me faça rir! De alguns dólares extras de impostos da população agradecida que protegemos? Ah!
— Talvez. Talvez não, Robert. Mas o tiro vai sair pela culatra, qualquer dia desses. Os pagamentos especiais... o dinheiro solto e sem origem definida que, "por acaso", vai parar numa gaveta de delegacia? Não é?
— É, mas não no meu bolso, porque não estou metido nisso, não recebo nada por fora, e nem a grande maioria, quer seja britânica, quer chinesa. Entrementes, como podemos nós, trezentos e vinte e sete pobres demônios estrangeiros policiais superiores, controlar oito mil e tantos policiais subalternos e tiras, e mais três milhões e meio de filhos da mãe civilizados que nos odeiam? É essa a questão.