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Sorte?, perguntou-se John Chen, com amargura. Descender do filho ilegítimo de um pirata escocês — um traficante de ópio, um gênio depravado e malvado, um assassino, se algumas das histórias fossem verdadeiras — e uma garota cantonense desenxabida tirada de um bordel nojento que ainda existe num beco nojento de Macau? Saber que quase todo mundo em Hong Kong conhecia a sua linhagem e ser desprezado por causa dela, por ambas as raças?

— Não é sorte — falou, tentando aparentar calma. Seus cabelos escuros tinham fios grisalhos, o rosto era anglo-saxão e bonito, embora um pouco flácido nas bochechas, e os olhos escuros apenas levemente asiáticos. Tinha quarenta e dois anos, e usava ternos de tropical, sempre impecavelmente talhados, com sapatos Hermes e relógio Rolex.

— Não concordo — falou Armstrong, sem ironia. — Ser o representante nativo da Struan, a Casa Nobre da Ásia... é algo muito especial.

— É, é especial — disse John Chen, secamente.

Desde que se entendia por gente, sua herança familiar o atormentava. Podia sentir olhos a fitá-lo — a ele, o filho mais velho, o seguinte na linha de sucessão —, podia sentir a cobiça e a inveja perenes. Aquilo o aterrorizava continuamente, embora tentasse combater de todas as formas o terror. Nunca quisera aquele poder ou aquela responsabilidade. Na véspera mesmo tivera outra briga angustiante com o pai, pior que as anteriores.

— Não quero ter nada a ver com a Struan! — berrara. — Pela centésima vez, quero dar o fora de Hong Kong, quero voltar para os Estados Unidos, quero viver a minha vida, do jeito que quero, onde quero e como quero!

— Pela milésima vez, vai me escutar. Mandei-o para os Esta...

— Deixe-me cuidar dos nossos interesses americanos, Pai.

Por favor. Há coisa de sobra para se fazer! Podia me dar uns dois mil...

— Ayeeyah, trate de me escutar! É aqui, aqui em Hong Kong e na Ásia que ganhamos o nosso dinheiro! Mandei-o estudar nos Estados Unidos para preparar a família para o mundo moderno. Está preparado, é seu dever para com a fam...

— Pai, há Richard, e o jovem Kevin... Richard é dez vezes melhor comerciante que eu, e está louco para agir. E quanto ao tio Jam...

— Fará o que estou mandando! Santo Deus, sabe que este americano Bartlett é vital para nós, precisamos do seu conheci...

—...tio James ou tio Thomas. Tio James seria o melhor para o senhor; melhor para a família e mel...

— Você é o meu filho mais velho. Será o próximo chefe de família e o próximo representante da firma!

— Juro por Deus que não!

— Então não ganhará nem mais um tostão furado!

— O que não fará muita diferença! Todos nós só recebemos uma miséria, não importa o que os estranhos pensem! Quanto o senhor vale? Quantos milhões? Cinqüenta? Setenta? Cem?...

— A não ser que peça desculpas imediatamente e acabe com toda essa baboseira, agora e para sempre, deserdo você agora mesmo! Agora mesmo!

— Peço desculpas por deixá-lo zangado, mas nunca vou mudar! Nunca!

— Dou-lhe um tempo até o meu aniversário. Oito dias. Oito dias para se tornar um filho obediente. É a minha última palavra. A não ser que se torne obediente até o meu aniversário, retirarei você e sua linhagem para sempre da nossa árvore genealógica! Agora, saia daqui!

O estômago de John Chen retorceu-se, desagradavelmente. Odiava as brigas intermináveis, o pai roxo de raiva, a mulher em lágrimas, os filhos apavorados, a madrasta, irmãos e primos todos exultando maldosamente, querendo que ele se fosse, todas as suas irmãs, a maioria dos tios, todas as suas mulheres. Inveja, cobiça. "Para o diabo tudo e todos", pensou. "Mas o Pai tem razão quanto a Bartlett, embora não do jeito que imagina. Não. Este é para mim. Este negócio. Basta este para eu ficar livre para sempre."

A essa altura já tinham atravessado quase todo o longo saguão da alfândega, fortemente iluminado.

— Vai às corridas no sábado? — perguntou John Chen.

— E quem não vai?

Na semana anterior, para êxtase geral, o imensamente poderoso Turf Club, com o seu monopólio exclusivo das corridas de cavalo — a única forma legal de jogo permitida na colônia —, distribuíra um aviso especiaclass="underline"

"Embora a nossa temporada oficial não comece este ano antes de 5 de outubro, com a gentil permissão de nosso ilustre governador, Sir Geoffrey Allison, os administradores resolveram declarar o sábado, dia 24 de agosto, um Dia de Corridas Muito Especial, para o prazer de todos, e como homenagem à nossa população trabalhadora, que está suportando o forte peso da segunda pior seca de nossa história com ânimo forte..."

— Ouvi dizer que a sua Golden Lady corre no quinto páreo — disse Armstrong.

— O treinador disse que ela tem chance. Por favor, venha até a tribuna do Pai tomar um drinque conosco. Bem que eu podia usar alguns dos seus palpites, você é um grande apostador.

— Só tenho sorte. Mas meus dez dólares de apostas jamais poderiam se comparar aos seus dez mil.

— Mas isso é só quando algum de nossos cavalos está correndo. A temporada passada foi um desastre... estou a fim de um vencedor.

— Eu também. — "Ah, Deus, como preciso de um vencedor", pensou Armstrong. "Mas quanto a você, Johnny Chen, está se cagando se perde ou ganha dez mil ou cem mil." Tentou controlar a sua inveja crescente. "Acalme-se", disse a si mesmo. "Os vigaristas existem, e é seu trabalho apanhá-los, se puder... não importa quão ricos ou poderosos sejam... e se contentar com o seu salário miserável quando em cada esquina há um monte de grana grátis. Por que invejar este filho da mãe... vai se ferrar, de um jeito ou de outro." — Ah, a propósito, mandei um guarda ir buscar o seu carro para passá-lo pelo portão. Estará à sua espera e dos seus convidados na saída do avião.

— Puxa, que ótimo, obrigado. Lamento a trabalheira.

— Não é trabalheira nenhuma. É uma questão de prestígio. Não é? Achei que devia ser muito especial, para você vir em pessoa. — Armstrong não pôde resistir a mais uma alfinetada. — Como já disse, nada é trabalho demais para a Casa Nobre.

John Chen manteve o seu sorriso cortês, mas pensou: "Vá se foder. Nós o toleramos pelo que é, um tira muito importante, cheio de inveja, com dívidas até o pescoço, certamente corrupto e que nada entende de cavalos. Vá se foder duas vezes. Dew neh loh moh para todas as suas gerações", pensou John Chen, mas disfarçou cuidadosamente o pensamento obsceno, pois embora Armstrong fosse verdadeiramente odiado por todos os yan de Hong Kong, John Chen sabia, de longa experiência, que a astúcia implacável e vingativa de Armstrong era digna de um manchu nojento. Estendeu a mão para a meia moeda que usava num fio de couro fino ao pescoço. Seus dedos tremeram ao tocar no metal, através da camisa. Estremeceu, involuntariamente.

— O que foi? — perguntou Armstrong.

— Nada. Nada mesmo. "Controle-se", pensou John Chen.

Já haviam cruzado o saguão da alfândega e estavam na área da Imigração, com a noite escura lá fora. Filas de pessoas ansiosas, inquietas, cansadas, esperavam diante das mesas pequenas e ordeiras dos funcionários da Imigração, uniformizados e de ar frio. Os homens saudaram Armstrong. John Chen sentiu sobre si seus olhos perscrutadores.

Como sempre, seu estômago dava voltas sob o escrutínio deles, embora soubesse que estava a salvo de suas perguntas insistentes. Tinha um passaporte britânico, não apenas um passaporte de Hong Kong de segunda classe, e também um cartão verde americano — o cartão dos estrangeiros —, o bem sem preço que lhe dava livre acesso a trabalhar, divertir-se e morar nos Estados Unidos, todos os privilégios de um americano nato, exceto o direito de votar. E quem precisava votar, pensou, e devolveu o olhar de um dos homens, tentando ganhar coragem, mas mesmo assim sentindo-se despido ante o olhar fixo do homem.

— Superintendente? — Um dos funcionários segurava um telefone. — É para o senhor.