"Ayeeyah", pensou Gornt. "Seu conselho provou-se verdadeiro, vezes sem conta. E me poupou muita angústia. Vai ser bom ver o Velho", pensou. "Este ano lhe darei um belo presente de Nataclass="underline" a Struan."
Guiava com cuidado pelo lado esquerdo da estrada sinuosa, grudada à montanha, a noite gostosa, a superfície lisa e o tráfego leve. Normalmente, quem estaria guiando seria o motorista, mas naquela noite não queria testemunhas do seu encontro com Plumm.
"Não", pensou. "Nem testemunhas quando for me encontrar com Wu Quatro Dedos. Que diabo aquele pirata está querendo? Nada de bom. Com certeza é coisa perigosa. É. Mas durante a Guerra da Coréia Wu me fez um enorme favor, e talvez agora esteja querendo que seja pago. Sempre há um acerto de contas, mais cedo ou mais tarde. É justo, e é a lei chinesa. Ganha-se um presente, dá-se outro um pouquinho mais valioso. Alguém lhe faz um favor..."
Em 1950, quando os exércitos comunistas chineses estavam abrindo um caminho sangrento para o sul, vindos de Yalu, com perdas monstruosas, tinham uma falta desesperada de todos os suprimentos estratégicos, e estavam dispostos a pagar muitíssimo bem àqueles que conseguissem furar o bloqueio com os suprimentos de que necessitavam. Naquela época, a Rothwell-Gornt também estava em dificuldades, por causa das suas perdas imensas em Xangai, no ano anterior, devido à conquista de Mao. Assim, em dezembro de 1950, ele e o pai haviam feito pesados empréstimos e comprado secretamente um enorme carregamento de penicilina, morfina, sulfa e outros suprimentos médicos nas Filipinas, evitando a licença de exportação obrigatória. Haviam ocultado o carregamento num junco marítimo alugado, com uma das suas tripulações de confiança, e o tinham enviado para Wampoa, uma ilha desolada no rio Pearl, perto de Cantão. O pagamento seria em ouro, contra a entrega, mas, a meio caminho, nos remansos secretos do estuário do rio Pearl, o junco deles fora interceptado por piratas fluviais favoráveis aos nacionalistas de Chang Kai-chek, que exigiram um resgate. Não tinham dinheiro para resgatar o carregamento, e se os nacionalistas descobrissem que a Rothwell-Gornt estava negociando com o odiado inimigo comunista, o futuro da companhia na Ásia estaria perdido para sempre.
Através do seu representante nativo, Gornt arranjara um encontro no porto de Aberdeen com Wu Quatro Dedos, supostamente um dos maiores contrabandistas do estuário do rio Pearl.
— Onde navio agora? — indagara Wu Quatro Dedos, no seu execrável inglês arrevesado, com sotaque chinês.
Gornt lhe respondera do melhor modo possível, expressando-se no mesmo inglês, já que não sabia falar haklo, o dialeto de Wu.
— Talvez, talvez não! — sorrira Wu Quatro Dedos. — Ligo três dias. Senha nee choh wah. Três dias, heya?
No terceiro dia, ele telefonara.
— Ruim, bom, não sei. Encontro dois dias Aberdeen. Começo Hora do Macaco.
A referida hora era às dez da noite. Os chineses dividiam o dia em doze segmentos de duas horas, cada um com um nome, sempre na mesma seqüência, começando às quatro da madrugada com o Galo, depois às seis da manhã com o Cão, e daí por diante: Javali, Rato, Boi, Tigre, Coelho, Dragão, Cobra, Macaco, Cavalo e Carneiro.
No Hora do Macaco, no junco de Wu, em Aberdeen, daí a dois dias, ele recebera o pagamento integral pelo seu carregamento em ouro, mais quarenta por cento extra. Um lucro fabuloso de quinhentos por cento.
Wu Quatro Dedos sorrira amplamente.
— Faço melhor negócio do que quai loh, tudo bem, vinte oito mil taéis de ouro. — Um tael pesava um pouco mais do que uma onça. — Próxima vez mim transporta. Sim?
— Sim.
— Você compra, mim transporta, mim vende, quarenta por cento meu, preço de venda.
— Sim.
Gornt, agradecido, tentara dar-lhe uma percentagem muito maior, daquela vez, mas Wu a recusara.
— Quarenta por cento só, preço de venda.
Mas Gornt compreendera que agora devia o favor ao contrabandista.
O ouro estava em barras de contrabando de cinco taéis. À taxa oficial, era avaliado em trinta e cinco dólares americanos a onça. Mas, no câmbio negro, contrabandeado para a Indonésia, a índia, ou de volta para a China, valia duas ou três vezes essa quantia... às vezes, mais. Nesse único carregamento, de novo com a ajuda de Wu, a Rothwell-Gornt ganhara um milhão e meio de dólares americanos, e estava a caminho da recuperação.
Depois disso, houvera mais três carregamentos, imensamente lucrativos para os dois lados. Depois, a guerra acabara, e o relacionamento deles também.
"Nem uma só palavra desde então", pensou Gornt. "Até o telefonema de hoje à tarde."
— Ah, velho amigo, pode encontrar? Hoje? — perguntara Wu Quatro Dedos. — Pode ser? Qualquer hora... eu espero. Mesmo lugar antigamente. Sim?
Bem, tinha chegado a hora de retribuir o favor.
Gornt ligou o rádio. Chopin. Guiava automaticamente pela estrada sinuosa, concentrado nos encontros que teria a seguir, o motor do carro quase silencioso. Diminuiu a marcha por causa de um caminhão em sentido contrário, depois girou o volante e acelerou na reta curta para ultrapassar um táxi vagaroso. Agora em velocidade bem alta, freou bruscamente a uma distância segura da curva cega, depois algo pareceu se romper nas entranhas do motor, seu pé afundou o quanto pôde no freio; seu estômago deu uma cambalhota, e ele entrou na curva muito fechada ligeiro demais.
Em pânico, enfiou o pé no freio até o fundo de novo, e de novo, mas nada acontecia, e ele girava o volante com as mãos. Entrou mal na primeira curva, serpenteando como se estivesse bêbado, ao ver que saíra dela no lado oposto da estrada. Felizmente, não vinha nada na sua direção, e ele corrigiu a posição do carro, com exagero, indo quase para cima da montanha, o estômago revirado de náusea. Corrigiu a posição de novo, em alta velocidade, e a curva seguinte surgiu à sua frente. Aqui a inclinação era maior, a estrada mais estreita e sinuosa. Novamente, fez a curva mal, mas depois dela teve uma fração de segundo para puxar o freio de mão, e isso diminuiu só um pouco a velocidade. Uma nova curva estava à sua frente, e ele saiu dela completamente fora da sua mão, com os faróis do carro na direção contrária a cegarem-no.
O táxi deslizou apavorado para o acostamento, e quase rolou lá para baixo, a buzina à toda, mas passou por ele a alguns centímetros de distância, enquanto ele jogava o carro, desesperado, para o lado certo, e depois descia o morro, completamente descontrolado. Um momento de estrada reta, e ele conseguiu engrenar uma primeira, enquanto enfrentava nova curva cega, com o motor agora uivando. Se não fosse pelo cinto de segurança, a súbita diminuição de velocidade o teria arremessado pelo pára-brisa, com as mãos quase grudadas ao volante.
Conseguiu passar pela nova curva, mas fê-la muito aberta, novamente, e não atingiu por um milímetro o carro que vinha em sua direção; deslizou de novo para o seu lado da estrada, manobrou para corrigir a posição, agora um pouco mais devagar, mas não havia alívio na inclinação ou na sinuosidade da estrada à sua frente. Ainda ia depressa demais na nova curva fechadíssima, e, ao sair da primeira parte da curva, já se encontrava totalmente na pista contrária. O caminhão supercarregado que subia o morro não podia fazer nada.
Desesperado, girou violentamente o volante para a esquerda e conseguiu passar pelo caminhão com apenas um raspão. Tentou engrenar uma ré, mas ela não obedeceu, as engrenagens guinchando em protesto. Então, apavorado, viu o tráfego vagaroso adiante, na sua faixa, tráfego vindo em sua direção na faixa oposta, e a estrada sumir por detrás da curva seguinte. Estava tão perdido que virou à esquerda, para cima da montanha, tentando ricochetear e parar, daquela maneira.
Houve um uivo do metal que protestava, a janela lateral de trás se estilhaçou, e ele ricocheteou. O carro que se aproximava jogou-se para o acostamento, o motorista deitado na buzina. Ele fechou os olhos e preparou-se para a colisão de frente, mas, não sabia como, ela não aconteceu, e ele tinha passado, e teve apenas força suficiente para girar violentamente o volante de novo e bater na encosta do morro, de raspão. O pára-lama esquerdo dianteiro foi arrancado. O carro entrou vegetação e terra adentro, depois bateu com força numa formação rochosa, empinou e lançou Gornt para o lado. Mas quando o carro ia voltar a tocar o chão, a roda mais próxima entrou na calha de chuva e engatou ali e, pouco antes de entrar de cara no Mini paralisado à sua frente, parou completamente.