— Saúdem-me, seus malditos sacanas.
Awata, o Sargento japonês, Awata, o Temível, suando e nervoso, adiantou-se e fez uma reverência. Depois, todos fizeram reverência.
— Melhorou, seus malditos sacanas — falou o Capitão. A seguir, arrancou os fuzis das mãos de cada um dos homens, e lançou-os ao chão. — Voltem para dentro dessa bosta de casa da guarda.
Awata compreendeu o movimento da mão dele. Mandou que os guardas entrassem em forma. A seguir, por ordem dele, todos se inclinaram novamente. O Capitão ficou olhando para eles. Depois, devolveu o cumprimento.
— Saúdem-me, seus malditos sacanas — repetiu o Capitão, mais uma vez. Novamente, os guardas se inclinaram.
— Ótimo — falou o Capitão. — E da próxima vez que eu mandar saudar, saúdem!
Awata e todos os homens se inclinaram, e o Capitão se virou e caminhou para a barricada.
Peter Marlowe sentiu os olhos do Capitão sobre si e sobre os homens em derredor, e teve um sobressalto de medo, recuando.
Viu primeiro a repulsa nos olhos do Capitão, depois a compaixão. O Capitão berrou para os guardas:
— Abram este maldito portão, seus malditos sacanas.
Awata compreendeu o gesto dele e veio correndo com três guardas e tiraram a barricada do caminho.
O Capitão passou, e quando os japoneses começaram a fechar a barricada de novo, berrou:
— Deixem esta porcaria em paz. Obedeceram, e novamente fizeram uma reverência.
Peter Marlowe tentava concentrar-se. Isto estava errado. Completamente errado. Não podia estar acontecendo. E então, subitamente, o Capitão estava postado à sua frente.
— Alô — disse o Capitão. — Sou o Capitão Forsyth. Quem está no comando, aqui? — Suas palavras eram suaves, e muito gentis; mas Peter Marlowe podia apenas sentir os olhos do Capitão, examinando-o da cabeça aos pés.
O que foi? O que há de errado comigo? Peter Marlowe perguntava-se desesperadamente. O que há de errado comigo? Assustado, recuou mais um passo.
— Não precisa ter medo de mim. — A voz do Capitão era profunda e compassiva. — A guerra acabou. Mandaram-me para providenciar que sejam todos bem cuidados.
O Capitão deu um passo à frente. Peter Marlowe recuou, e o Capitão parou. Vagarosamente, o Capitão tirou do bolso um maço de Players. Bons Pla-yers ingleses.
— Quer um cigarro?
O Capitão se adiantou, e Peter Marlowe saiu correndo, apavorado.
— Espere aí! — gritou o Capitão para ele. Depois, aproximou-se de outro homem, que também deu meia-volta e fugiu. E todos os homens fugiram do Capitão.
O segundo grande medo tomou conta de Changi.
Medo de si mesmo. Será que estou bem? Estou mesmo, depois de todo esse tempo? Quero dizer, será que estou regulando bem da cabeça? Faz três anos e meio, afinal. E, meu Deus, lembra o que Van der Zelt falou sobre a impotência? Será que vou funcionar? Serei capaz de fazer amor? Vou-me sair bem? Vi o horror nos olhos do Capitão quando me fitou. Por quê? O que estava errado? Acha que, será que tenho coragem, coragem de perguntar a ele... tudo bem comigo?
Quando o Rei ouviu falar no Capitão pela primeira vez, estava deitado na cama, sorumbático. Ainda ocupava a posição privilegiada sob a janela, mas agora tinha o mesmo espaço que os outros homens... 1,80m por 1,20m. Quando voltara da horta norte, encontrara sua cama e cadeiras mudadas de lugar, e outras camas estavam agora espalhadas pelo espaço que era seu, de direito. Nada dissera; e os homens também nada disseram. Mas o Rei olhara para eles, e todos desviaram o olhar.
Além disso, ninguém buscara ou guardara sua refeição da noite. Fora consumida pelos outros.
— Puxa — falara Tex, distraidamente — acho que esquecemos de você. É melhor estar aqui na hora, na próxima vez. Cada homem é responsável por sua bóia.
Então, o Rei cozinhara uma de suas galinhas. limpara-a, fritara-a e a comera. Ou melhor, comera metade e guardara a outra metade para o desjejum. Agora, sobravam-lhe apenas duas galinhas. As outras haviam sido consumidas durante os últimos dias... e ele as partilhara com os homens que haviam trabalhado.
Na véspera, tentara comprar a loja do campo, mas a pilha de dinheiro que o diamante rendera não tinha nenhum valor. Na carteira, havia 11 dólares americanos, e estes eram aceitos. Mas sabia... gelado até a alma... que não poderia durar para sempre com 11 dólares e duas galinhas.
Dormira pouco na véspera. Mas, na vigília desolada da madrugada, enfrentara-se e dissera a si mesmo que aquilo era uma fraqueza e uma tolice, que não condizia com o comportamento de um Rei... não importava que, quando andasse pelo campo, as pessoas o olhassem como se não existisse — Brant, Prouty, Samson e os demais haviam passado por ele sem retribuir a sua continência. Fora a mesma coisa com todo o mundo. Tinker Bell, Timsen, os PMs e seus informantes e empregados... homens que ajudara ou conhecera, ou para quem vendera algum objeto ou a quem dera comida, cigarros ou dinheiro.
Agiam como se ele não existisse. Ao contrário de antigamente, quando havia sempre olhos a segui-lo, e ódio a cercá-lo, quando percorria o campo, agora não havia nada. Nem olhos, nem ódio, nem sinal de reconhecimento.
Fora enregelante andar pelo campo como um fantasma. Voltar para a choça como um fantasma. Deitar-se na cama como um fantasma.
O nada.
Agora, ouvia as palavras de Tex, que narrava à choça a incrível novidade da chegada do Capitão, e podia sentir o novo medo que os corroía.
— O que foi? — disse. — Por que está todo mundo tão calado? Foi um cara que chegou do exterior, só isso.
Ninguém respondeu.
O Rei se levantou, irritado com o silêncio, odiando-o. Vestiu a melhor camisa que tinha, a calça limpa, e tirou o pó dos sapatos engraxados. Colocou o quepe num ângulo atrevido e ficou parado à porta, por um momento.
— Acho que vou cozinhar alguma coisa, hoje — falou, sem se dirigir a ninguém, em especial.
Ao olhar à sua volta, pôde ver a fome estampada na fisionomia deles, e a esperança mal disfarçada nos seus olhos. Sentiu-se aquecido de novo, normal de novo, e olhou-os de um em um.
— Vai estar ocupado hoje, Dino? — perguntou, finalmente.
— Hã... não, não — disse Dino.
— Preciso que me arrumem a cama e me lavem um pouco de roupa.
— Quer que eu... hã... faça isso para você? — perguntou Dino, constrangido.
— Quer fazer?
Dino praguejou baixinho, mas a lembrança do cheiro da galinha, na véspera, acabou com sua força de vontade.
— Claro — falou.
— Obrigado, amigão — disse o Rei, debochadamente, divertido com a luta evidente que Dino travara com a consciência. Virou-se, e começou a descer as escadas.
— Hã... qual a galinha que vai querer? — gritou Dino para ele.
— Depois resolvo — respondeu o Rei, sem sequer parar. — Arrume a cama e lave as roupas.
Dino encostou-se no vão da porta, observando o Rei caminhar ao Sol ao longo do muro da cadeia, dobrando, em seguida, a esquina.
— Filho da puta!
— Vá pegar a roupa suja — disse Tex.
— Vá à merda! Estou com fome.
— O Rei o engabelou para trabalhar para ele sem a porra da galinha.
— Ele vai comer uma, hoje — falou Dino, teimosamente. — E vou ajuda-Io a comê-la. Nunca comeu nenhuma antes, sem dar um pouco para seu ajudante.
— E ontem à noite?
— Porra, estava uma fera porque ocupamos o espaço dele. — Dino pensava no Capitão inglês, na sua casa e na namorada, e se perguntava se ela ainda o estaria esperando, ou ter-se-ia casado. Claro, disse consigo mesmo, sombriamente, ela estará casada, e não haverá ninguém à espera. E como vou arranjar um emprego, merda?
— Isso era antes — dizia Byron Jones III — aposto que agora o filho da puta vai cozinhá-la e comê-la na nossa frente. — Mas pensava na sua casa. Pois sim que vou continuar morando lá. Preciso arranjar um apartamento só meu. É. Mas com que grana?