O argumento arrastou-se por tanto tempo e tornou-se tão extenuante e infrutífero que, por diversas vezes, Palin chegou a cochilar. Acordava em sobressalto quando uma voz mais estridente se alteava e tombava de novo no sono. Tinha a nítida e algo desagradável sensação de ver escoar o tempo, mas esse tempo situava-se em algum lugar e não ali.
Ia questionar Raistlin, mas, quando tentou falar, este abanou a cabeça e os seus olhos dourados cerraram-se. Parecia bastante descontente. Tasslehoff dormia a sono solto, ressonando baixinho.
Por fim, precisamente quando Hiddukel afirmava estar preparado para citar vários precedentes legais importantes, todos com relação direta com o seu caso, Paladino e Takhisis, que, durante a discussão tinham guardado silêncio e permaneciam calados, entreolharam-se.
Viu-se um clarão repentino de luz brilhante e só os três deuses de categoria superior permaneceram no círculo. Os deuses inferiores desapareceram.
— Foi inútil trazê-los até aqui — disse Takhisis em tom azedo.
— Tínhamos que tentar — pronunciou-se Gileano, até então calado. Segurava um grande livro e não parava de escrever nele. — Talvez ficássemos sabendo de algo que pode vir a nos ser útil.
— Para mim foi óbvio que nenhum deles sabia como isto aconteceu — replicou Paladino. — Ao que parece, o Caos ficou preso dentro da Pedra Preciosa Cinzenta e — com ou sem razão — atribui-nos a culpa.
— Caso esteja falando a verdade — disse Takhisis. — Poderia ser um truque.
— Acredito que ficou preso lá dentro — observou Gileano, com ar pensativo. — O assunto mereceu um estudo cuidadoso e tal explicaria muita coisa: a confusão que a Pedra Preciosa Cinzenta espalhou por todo o Krynn, o fato de nenhum de nós ser capaz de controlá-la...
— Os teus Irdas conseguiram controlá-la, irmão — interrompeu Takhisis, dardejando Paladino com um olhar de recriminação.
— Diga antes que ela os controlou — respondeu o deus, em tom soturno. — O Caos descobriu por fim pessoas a quem pode manipular, pessoas que, em magia, são suficientemente fortes para libertarem-no e que no entanto não possuem força suficiente para detê-lo. Pagaram pela sua loucura.
— E ele está determinado em nos fazer pagar. A questão que se põe é: ele pode fazer isso? Ele será suficientemente forte? A nossa força foi crescendo ao longo dos séculos.
— Mas não o suficiente — observou Gileano, com um suspiro. — Irmã, como você mesma relatou, o Caos provocou uma grande fenda, que está se formando no Abismo. O seu poder aumentou, transcendendo tudo o que possamos imaginar. Está convocando os seus exércitos: demônios, terríveis guerreiros das sombras e dragões que expelem fogo. Quando estiver preparado, atacará Krynn. O seu objetivo: destruir tudo o que criamos. Quando consumado, a fenda será imensa e profunda, tão imensa e tão profunda que engolirá o mundo. Tudo o que existe agora, ficará reduzido a nada.
— E o que vai ser de nós? — inquiriu Takhisis. — Que fará conosco?
— Ele nos deu vida — respondeu Paladino, a custo. — Pode nos tirar.
— A questão que se põe é: que faremos agora? — perguntou Gileano, passeando o olhar pelos irmãos.
— Está brincando conosco — disse Paladino. — Num abrir e fechar de olhos, pode nos destruir a todos. Quer nos ver sofrer, ver a nossa Criação sofrer.
— Irmãos, sugiro que partamos sorrateiramente antes que ele dê pela nossa falta — sugeriu Takhisis, com um encolher de ombros. — Podemos sempre criar outro mundo.
— Não abandonarei os que confiaram em mim — interveio Paladino, com ar soturno. — Se for necessário, me sacrificarei por eles.
— Talvez lhes façamos um favor se partirmos — salientou Gileano. — Se partirmos, é possível que o Caos nos siga.
— Depois de destruir o mundo — insistiu Paladino, com os olhos a reluzir —, o “nosso brinquedo”, como ele chama. Não mostrará compaixão. Vou ficar e combatê-lo... se for necessário, sozinho.
Pensativos, os outros dois deuses guardaram silêncio.
— Irmão, talvez esteja certo — disse Takhisis com uma doçura repentina e desarmante. — Devemos ficar e lutar. Mas necessitaremos da ajuda dos mortais, não concorda?
— Diga antes que precisam de se ajudar uns aos outros— disse Paladino, olhando para a irmã com ar duvidoso.
— Nunca poderíamos destruir o Caos — disse Gileano —, mas haverá possivelmente meios de obrigá-lo a partir. Neste sentido, os mortais poderiam nos ajudar.
— Se estivessem unidos — observou Takhisis. — De nada servirá os exércitos dos humanos e dos elfos estarem atiçados uns contra os outros quando deveriam combater as legiões do Caos.
— Se unirão — disse Paladino, com voz sinistra. — Não lhes resta outra opção.
— Talvez. Talvez não. Meus irmãos, temos coragem para arriscar? Para bem deles e para o nosso?
— Irmã, fale sem rodeios — pediu Paladino. — Já estou vendo que tem algum plano em mente.
— E que sem dúvida reverterá em seu benefício — acrescentou Gileano em surdina, referindo-se à irmã.
Takhisis ouviu-o e compôs um ar magoado de quem se espanta por terem a coragem de interpretá-la tão mal.
— Se conseguirmos livrar o mundo do Caos, o que reverter em benefício de um irá beneficiar todos. Não é verdade, meus queridos irmãos? — disse.
— Qual é o seu plano? — repetiu Paladino.
— Muito simples. Passem o controle de Ansalon para as mãos dos meus cavaleiros. Permitam-lhes que se tornem seus regentes. Sob o seu governo, a lei e a ordem prevalecerão. Terminarão estas quesilas e lutas infindáveis entre os mortais. A paz voltará a Ansalon. Os mortais se tornarão coesos e deste modo preparados para o ataque do Caos.
— Unidade? A unidade dos escravos! A paz do cárcere! Não posso acreditar! Não esperava isto nem sequer de você, irmã! — replicou Paladino, em tom furioso. — Nunca enfrentamos tamanho perigo e mesmo assim, embora a tua existência esteja presa por um fio, continua a maquinar e a conspirar para obter as coisas à sua maneira! Não concordo!
— Irmão, tenha calma — interveio Gileano, em tom conciliador. — Sem dúvida que a nossa amada irmã joga com um pau de dois bicos. O que mais esperava? No entanto, o plano que propôs tem algum mérito. Uma Ansalon pacífica e unificada, mesmo à custa das trevas, melhor preparada para enfrentar os exércitos do Caos do que uma Ansalon fragmentada, dividida e em polvorosa.
Paladino ficou pensativo, perturbado. Olhou para Takhisis e depois para Gileano.
— Apóia-a nisso? — perguntou.
— Sim, irmão, receio que sim — respondeu Gileano, em tom gentil. — Não me resta outra esperança.
— Vamos, irmão, não seja egoísta! — insistiu Takhisis, em tom sardônico. — Fala sem pudor em sacrificar-se pelos seus preciosos mortais. Mas, quando soa a hora de fazê-lo, recua. É só conversa fiada? Ou fala mesmo a sério?
Paladino permaneceu por largo tempo em silêncio. De cenho franzido, olhou, penalizado, para o mundo. Abanando a cabeça, disse por fim:
— Não consigo vislumbrar o futuro. As chamas e a fumaça tapam-me a visão. Não posso assegurar que vocês dois estejam certos. Porém, como vejo ambos contra mim, não me resta outra opção senão concordar. Irmã — acrescentou, com um suspiro de amargura —, Ansalon será sua.
— Uma opção sábia, meu irmão — respondeu Takhisis, fria, sinistra e magnânima no triunfo.
— Mas, só governará até à destruição das forças do Caos — insistiu Paladino.