— Não, sobrinho. Não vou.
— Mas se quisesse poderia. Não está morto. Deu-me o bastão. Foi você quem nos conduziu até aqui.
— Sim, poderia regressar — disse Raistlin com brandura. — Tem razão. Não morri. No entanto, não estou verdadeiramente vivo. Mas porque haveria de voltar? Enquanto me encontrei no mundo, a minha presença não inspirou lá muito prazer. Já cumpri a minha parte... trouxe-o aqui, mostrei-lhe o perigo. Você fez o que nenhum outro mortal jamais conseguiu. Testemunhou um encontro entre os deuses. Agora, tem que regressar, avisar as pessoas, avisar os cavaleiros, de Takhisis e de Paladino, avisar os feiticeiros das três luas e os das Vestes Cinzentas. Avisar o teu pai e pedir-lhe que divulgue as notícias. Conte a todos eles o que viu e ouviu.
— Assim farei — respondeu Palin. — Mas, não estou bem certo se compreendi bem o que vi e ouvi. Posso avisá-los que o Caos tenciona destruir o mundo. Posso avisá-los que o Paladino nos confiou às mãos das trevas. Pergunto-me se alguém acreditará em mim. Mas, tio, em ti eles acreditariam. Venha comigo!
Raistlin olhou intensamente para Palin.
— Não é esse o único motivo porque quer que eu volte, não é sobrinho?
Corando, Palin respondeu com brandura:
— Não, tio, não é. Vim ao teu encontro... porque queria que me ensinasse.
— Há inúmeros mestres de artes mágicas por esse mundo afora. Em você, a arte é inata, sobrinho. Decerto há muita gente que queria um aluno tão brilhante.
— Talvez, mas não iriam querer — respondeu Palin, ainda mais ruborizado.
— E porque não? — inquiriu Raistlin com brandura.
— Por causa... por causa... — Palin hesitou.
— Por causa de mim? — disse Raistlin com um desagradável sorriso. — Ainda lhes inspiro muito receio, não é?
— Não é que deseje ferir seus sentimentos — interveio Tas, solícito. — Mas o fato é que houve alturas em que não foi uma pessoa lá muito simpática.
Raistlin pousou os olhos dourados, em forma de ampulheta, no kender.
— Acho que ouvi alguém chamá-lo — disse.
— Quem seria? — Tas pôs-se à escuta, mas não ouviu nada. — Onde?
— Ali! — respondeu Raistlin, apontando.
E foi quando Tas ouviu algo — uma voz roufenha e rabugenta.
— O que você pensa que anda fazendo aqui, Tasslehoff Pés Ligeiros? Presumo que não seja coisa boa! Provavelmente chamando o azar, para você e esses pobres loucos se verem metidos num sem-fim de confusão...
Tasslehoff girou à volta com tanta rapidez que as abas do alforje se abriram, espalhando pelo Abismo afora os seus valiosos pertences. Mas, uma vez na vida, Tas não se importou.
— Flint!
Longa barba grisalha, olhar carrancudo e reprovador, voz roufenha e tudo isso. Tas preparava-se para abraçar Flint, gostasse o duende ou não de ser abraçado (em geral não gostava, mas tratava-se de uma ocasião especial), quando reparou nas duas pessoas atrás de Flint.
— Sturm! — arquejou Tas, com prazer. — E Tanis! Que vocês fazem aqui? Esperem! Já sei! Partimos em mais uma aventura! Onde vamos? Seja para onde for, tenho mapa para tudo. Os meus mapas, agora, estão atualizados. Tarsis junto ao mar já não está... junto ao mar, quero dizer. Tarsis mantém-se onde sempre esteve. Olha lá, Flint, fica quieto para eu poder te abraçar.
Flint bufou.
— Como se eu permitisse um kender se aproximar de mim uns milímetros! Ainda por cima me abraçar! Mantenha-se à distância e a minha bolsa de dinheiro ficará a salvo!
Tas, que sabia que Flint não falava a sério, tentou de novo abraçar o amigo. Mas, os braços do kender apenas cingiram ar cinzento. Tas recuou.
— Ora, Flint, deixe de brincadeiras! Como posso partir em aventura contigo se não pára quieto?
— Tas, receio que não possa vir conosco — disse Tanis com brandura. — Não que não quiséssemos ter a sua...
— Também não a queríamos — resmungou Flint.
Sorrindo, Tanis pousou a mão no ombro do duende.
— Viemos porque o teu amigo quer dar-lhe uma palavrinha — disse. Pouco à vontade, o duende saltitou de um pé para o outro, acariciou a barba e ficou muito vermelho.
— Então, Flint, do que se trata? — perguntou Tas, bastante contrito e sentindo um soluço a subir pela garganta acima. Experimentava uma dor esquisita no coração, como se no íntimo soubesse que algo ia mal e não quisesse contá-lo à sua parte exterior. Era estranho Tanis encontrar-se ali.
— Flint, que você queria me dizer?
— Bom, pequeno — disse Flint depois de uns quantos arquejos e pigarros. — Quando vi o Tanis, disse-lhe que...
A dor no coração de Tas foi crescendo até quase se tornar intolerável. Levou a mão ao peito, na esperança de que passasse, pelo menos até Flint acabar.
— Disse eu ao Tanis, quando o vi da primeira vez, que eu... bom... ando, por assim dizer, me sentindo um pouco só.
— Debaixo da árvore, quer dizer? — perguntou Tas.
— Não me interprete mal — resmungou Flint. — Estou muito bem situado. Aquela minha árvore... é uma maravilha! Cada pedacinho é tão lindo como as árvores do vale da nossa terra. Até o Tanis, quando a viu, disse o mesmo. E lá é quentinho, pois fica perto da forja de Reorx, o que se torna interessante. Nunca pára de criar, entende? E se não é isso, há sempre uma ou outra parte precisando de um retoque. Reorx trabalha lá, está sempre trabalhando. E conta histórias, fábulas maravilhosas dos outros mundos que conheceu...
— Histórias! — Tas sentiu-se mais animado. — Adoro ouvir histórias! E aposto que ele gostaria de algumas das minhas, como a de quando encontrei o mamute lanzudo...
— Ainda não acabei! — ribombou Flint.
— Desculpe, Flint — disse Tas em tom submisso. — Continue.
— Agora esqueci onde estava! — respondeu Flint com irritação.
— Dizia que estava sozinho... — sugeriu Tas.
— Já sei! — Flint cruzou os braços no peito, inspirou fundo e as palavras saíram-lhe em tropel. — Olhe pequeno, eu só queria dizer que se algum dia te apetecer me visitar, será bem-vindo. Não sei por que estou com isto. — O duende parecia extremamente confuso. — Mas sei que vou me arrepender por dizer isto... eu... começo a sentir a sua falta, pequeno.
— Ora, é claro que começa — respondeu Tas, espantado pelo duende não ter percebido há mais tempo. — Não consigo deixar de pensar... e espero que a tua árvore não se ofenda... que uma pessoa estar sentada o dia inteiro vendo um deus martelar o mundo, não me parece muito excitante. A propósito. Por falar em deuses, acabamos de ver o Reorx. E os outros deuses todos também! E estão acontecendo coisas das mais maravilhosas... perdão, terríveis... no mundo. Olha, vou chamar o Palin e ele lhes conta. Palin! — O kender virou-se, gritou e agitou a mão. — E ali está o Raistlin. Isso é uma assembléia, não acham? Não conheceu o Palin. Esquisito, porque ele não aparece para cumprimentá-los?
Palin olhou de relance, e acenou com a mão, um aceno que dizia: Ótimo, está se divertindo. Continue assim. Agora deixe-me.
Flint, que nos últimos minutos tentara falar, mas que não conseguira devido às interrupções de Tas, acabou por dizer:
— O palerma, ele não pode nos ver!
— É claro que pode! — retrucou Tas, algo irritado. — Só o Tanis é que precisa de óculos...
— Já não mais, Tas — disse Tanis. — O Palin não pode nos ver porque está vivo. Nós agora existimos num plano diferente.
— Você também, Tanis? — inquiriu Tas em surdina.
— Receio que...
— Deve ter feito algo não suscetível de conduzir a uma vida longa — prosseguiu apressadamente Tas, pestanejando e passando a mão pelos olhos. Depois, assumiu uma expressão sombria, — Devo dizer-lhe, Tanis, que não foi muito inteligente da tua parte. Eu explico, andava sempre me avisando para não fazer coisas que não fossem suscetíveis de levar a uma vida... longa... — A sua voz começou a vacilar.