— Acho que nem pensei — respondeu Tanis com um sorriso. — Vivi uma existência boa. Tive muitas bênçãos na vida. Foi penoso deixar os entes queridos — acrescentou —, mas tenho amigos aqui.
— E inimigos também — comentou Flint com ar sinistro. O rosto de Tanis tornou-se severo.
— Sim, travaremos neste reino as nossas próprias batalhas — disse. Tas puxou um lenço (um de Palin), enxugou os olhos e assoou-se.
Depois, aproximou-se de Flint.
— Flint, vou te contar um segredo — disse num sussurro que possivelmente foi audível em muitas partes do Abismo —, já não sou o aventureiro que costumava ser. Não. — O kender soltou um profundo suspiro. — Às vezes penso... e sei que não vai acreditar... mas às vezes penso em me aposentar, assentar. Não compreendo o que se passa comigo. Já não se trata apenas de brincadeira, não sei se me entende.
— Ah, seu cabeça de atum! — disse Flint em tom roufenho. — Não adivinha? Está ficando velho!
— Velho? Eu! — Tas sentia-se chocado. — Quer dizer, por dentro não me sinto velho. Se não fossem as dores ocasionais nas costas e nas mãos e o desejo irresistível de tirar umas sestas junto à fogueira em vez de gritar insultos aos minotauros, eles ficam zangados mesmo, sabia? Em especial quando lhes dizemos: “Muu!” É espantoso como um minotauro pode correr depressa quando vai atrás de nós! Seja como for, onde eu estava?
— Onde devia ir — disse Tanis. — Adeus. Que o minotauro nunca te apanhe.
— Faça “Muu!”, ao minotauro — resmungou Flint. — Por todas as cabeças de atum! Cuide de si, pequeno! — Virando-se rapidamente, afastou-se em passos muito rápidos, abanando a cabeça. A última coisa que Tas ouviu foi o duende murmurar ainda, de si para si: “Muu!”
— Que Paladino te acompanhe, Tas — disse Sturm e, virando-se, seguiu atrás de Flint.
— Desde que ele vá junto de mim e não tente nenhum encantamento de bolas de fogo — disse Tas, algo duvidoso.
Ficou olhando até perdê-los de vista, o que aconteceu quase de imediato, porque num instante encontravam-se ali e no seguinte, não se encontravam.
— Tanis? Flint? — Tas chamou-os algumas vezes. — Sturm? Desculpem, uma vez, sem querer, tirei-lhes os anteparos para as mãos.
Mas não ouviu resposta.
Depois de uns tantos acessos de choro e soluços inesperados, Tas, ainda soluçando, inspirou fundo, limpou o nariz na manga — o lenço estava ensopado de tanto usá-lo — e, um tanto irritado, suspirou.
— As pessoas precisam de mim, diz o Tanis. Bom, parece que estão sempre precisando. Fazer desaparecer um fantasma aqui, lutar contra um duende maléfico ali. Não tenho um momento de paz. Mas é assim que se engendra um herói. Só terei de fazer o meu melhor.
Reunindo os alforjes, Tas, arrastando os pés na areia cinzenta, regressou lentamente ao Portal. Palin continuava conversando com Raistlin.
— Gostaria que reconsiderasse. Vamos, tio! O pai vai ficar contentíssimo por te ver!
— Será? — inquiriu Raistlin com brandura.
— Ora essa, claro... — Hesitante, Palin calou-se. Sorrindo, Raistlin encolheu os ombros.
— Está vendo? — disse. — É melhor deixar as coisas como estão. Olhe! — Do Portal começava a emanar um clarão tênue. — A Rainha está dirigindo os seus pensamentos para cá outra vez. Já percebeu que o Portal está aberto. Tem que voltar e fechá-lo de novo. Use o bastão. Apresse-se.
A escuridão adensou-se no céu e o cinzento começou a tornar-se negro. Palin olhou, inquieto, mas ainda hesitante.
— Tio...
— Vá embora, Palin — disse Raistlin com frieza na voz. — Não sabe o que me pede.
Palin suspirou, olhou para o bastão e de novo para Raistlin.
— Obrigado, tio — disse. — Obrigado por ter fé em mim. Não te desiludirei. Vamos, Tas. Apresse-se! Os guardiões estão voltando!
— Já vou!
Mas Tas continuava a arrastar os pés. O mínimo que se podia dizer é que o pensamento das cinco cabeças multicoloridas de dragão a gritar, quem sabe se todas elas a tentar devorá-lo, excitava-o. Bom, não muito.
— Adeus, Raistlin. Direi a Caramon que você disse... Ora, olá, Kitiara! Credo! Com certeza que as pessoas não aparecem assim do nada por estas bandas, sem mais nem menos, aparecem? Kitiara, lembra-se de mim? Sou o Tasslehoff Pés Ligeiros!
A mulher de cabelo escuro, com uma armadura de dragão azul e uma espada na ilharga, empurrou brutalmente o kender para o lado. Foi postar-se em frente de Palin, bloqueando-lhe o caminho de volta ao Portal.
— Até que enfim que te encontro, sobrinho — disse Kitiara com o seu sorriso retorcido. Estendendo a mão, deu um passo em frente. — Porque não fica um pouco mais? Está chegando alguém que gostaria muito de te ver...
Tas deu um grito de advertência:
— Palin, cuidado!
Kitiara desembainhou a espada. A lâmina emitiu uma cintilação pardacenta, sombria, lúgubre. Avançando para Palin, disse:
— Ouviu o que não devia ouvir! A minha rainha não usa de benevolência para com os espiões!
Kitiara brandiu a espada. Erguendo o bastão, Palin amorteceu o golpe e tentou arremessar Kitiara para trás. Os dois engalfinharam-se. De repente, Kit caiu para trás. Desequilibrado, Palin tropeçou para frente. Kit deu um pulo e investiu.
Frenético, Tas procurou algo com que arremessar em Kitiara. Não descobriu mais nada senão os objetos que guardava nos alforjes e a sua pessoa. Vendo que os seus pertences mais queridos, embora indiscutivelmente valiosos, de pouco serviam para deter uma Kitiara enraivecida, Tas precipitou-se para frente, lançando contra ela o pequeno corpo, na esperança de derrubá-la e ao mesmo tempo evitar que a sua espada o trespassasse.
Esqueceu-se que se encontrava no Abismo. O kender voou contra Kitiara, atravessou Kitiara voando e foi aterrar do outro lado de Kitiara, sem sequer tocá-la. Mas, o gesto não foi em vão; conseguiu acertar na espada que, fato estranho, possuía substância. Kitiara, que a mantinha apontada para o coração de Palin, falhou.
Abalado e confuso, Tas foi aterrar de quatro.
Palin cambaleou para frente. Uma mancha de sangue tingia-lhe as vestes brancas. Apertou o ombro, vacilou e tombou de joelhos. Com uma praga, Kitiara ergueu a espada e investiu de novo.
Esforçando-se para levantar, Tas preparava-se para se lançar outra vez contra a espada quando ouviu Raistlin, que entoava estranhas palavras. Tas viu vestes negras rodopiando à sua frente. Os dragões do Portal começavam a chiar e no exato momento em que a situação atingiu o auge do interesse, algo acertou em Tasslehoff, bem entre os olhos.
Viu desfilar uma coleção interessantíssima de estrelas, sentiu-se tombar e mergulhou numa inesperada soneca.
10
O prisioneiro.
A flagelação.
A chave rodou na fechadura e a porta da cela se abriu.
— Montante Luzente, tem visitas — disse o carcereiro.
Steel sentou-se no catre de palha e esfregou os olhos, para espantar o sono. Interrogou-se se seria dia ou noite. Não tinha como saber. As masmorras, que se situavam no primeiro nível da torre, não possuíam janelas. Piscando ao clarão da tocha, Steel tentou ver quem entrava.
Ouviu o roçar de vestes e notou um fulgor pardacento.
Steel ergueu-se lentamente, fazendo chocalhar os grilhões que lhe prendiam os pés. Tinha que mostrar respeito para com esta mulher, pois era seu superior, mas o faria sem pressa.
— Dama da Noite — disse, observando-a circunspecto.