Esta aproximou-se e percorreu-o com o olhar, detendo-se nos mais ínfimos pormenores da sua degradação, desde as roupas sujas ao cabelo emaranhado e aos pulsos algemados.
— Deixe-nos — disse Lillith, a Dama da Noite, virando-se para o carcereiro. — Feche a porta.
— Não o empate muito, Dama da Noite — grunhiu este, colocando a tocha num anteparo de ferro da parede. — Tem trabalho para fazer.
— Só demoro uns instantes. — Lillith aguardou até o homem sair, e depois virou-se para Steel. Os seus olhos emitiam um brilho fantasmagórico. Mirou-o com uma intensidade que parecia imprimir-lhes uma luz sinistra, que lhe vinha dos recessos.
— Dama da Noite, por que veio? — perguntou Steel finalmente, que começava se fartar deste silencioso escrutínio. — Rejubilar com a minha queda?
— Tal não me causa prazer, Montante Luzente — respondeu Lillith abruptamente. — Tudo o que faço é pela glória da nossa Rainha. Vim dizer porque é necessário que morra.
Steel encolheu os ombros.
— Então perdeu o seu tempo, Dama da Noite. Sei que devo morrer. Você mesma disse. Perdi o prisioneiro que se encontrava à minha guarda.
— Foi por premeditação que o perdeu — respondeu a Dama da Noite com voz calma. — Enviei-o numa missão impossível, perfeitamente ciente de que o perderia. Contudo, surpreendeu-me que voltasse. Esperava — prosseguiu, falando com desenvoltura — que ambos morressem na Clareira de Shoikan. Quando isso não aconteceu, achei que a Rainha das Trevas te mataria, e ao mago, no Abismo. Também esse plano falhou. Mas felizmente, por esta altura, o mago já morreu. E em breve será a tua vez. — Aquiesceu várias vezes com a cabeça e repetiu: — Em breve será a tua.
Sentindo-se confuso, Steel ficou sem palavras. O fato daquela mulher odiar tão completa e malevolamente, sem motivos para tal, transcendia a sua compreensão. Por fim, vendo que estava à espera que falasse, observou:
— Não consigo entender por que veio aqui, Dama da Noite. Se foi para escarnecer de mim...
— Não, nada disso. Não me causa nenhuma satisfação. Vim porque queria que compreendesse. Não desejava que comparecesse perante a nossa Rainha e me acusasse de tê-lo mandado executar por motivos falsos ou injustos. Sua Majestade pode ser... muito vingativa.
Calando-se, a Dama da Noite pôs-se a cismar.
Steel não estava com disposição para se mostrar simpático.
— Dama da Noite, o que fez equivale a um assassínio, foi traiçoeira, falsa, indigna de um cavaleiro de Ariakan.
Lillith prestou-lhe pouca atenção.
— Steel Montante Luzente, perscrutei o futuro — disse. — Vi-o, e ao mago, o Veste Branca, juntos num campo de batalha. Vi um relâmpago atingir a torre. Vi a morte, a destruição, a queda da cavalaria. — Os olhos, que irradiavam um estranho clarão, viraram-se para ele. — Você e o Veste Branca tinham que morrer. Só assim se evitaria a desgraça. Compreende? Decerto o aceita como inevitável!
— Aceito a decisão do meu senhor — respondeu Steel, escolhendo cuidadosamente as palavras. — Se a minha morte beneficiar a cavalaria, então que seja.
A Dama da Noite parecia no mínimo satisfeita com a resposta. Arreganhando o lábio inferior, remexeu nas pedras divinatórias que tinha no bolso.
O carcereiro abriu a porta da cela.
— Tem outra visita, Montante Luzente — anunciou.
O subcomandante Trevalin entrou e, quando avistou a Dama da Noite, pareceu ficar desagradado. Tampouco esta se rejubilou por vê-lo. Sem dirigir mais palavras a Steel, deu meia volta e saiu precipitadamente da cela, fazendo rodopiar à sua volta as vestes cinzentas. Trevalin recuou, para evitar eventuais contatos.
— O que ela fazia aqui? — perguntou.
— Conversa de feiticeira — respondeu Steel, profundamente perturbado. — Presságios e coisas assim. Disse... — calou-se, hesitante —, disse que a minha morte se torna necessária, caso contrário, a cavalaria cairá. Diz ela que o previu.
— Bobagens! — bufou Travalin. Baixando a voz, acrescentou: — Sei que o nosso amo preza bastante esses fazedores de magia, mas eu e você somos soldados. Sabemos que o futuro é o que construímos, com isto. — Levou a mão ao punho da espada. — Montante Luzente, você é um guerreiro valente. Serviu bem a nossa Rainha. Será recompensado. Pela última vez, será que não consigo persuadi-lo a falar com Lorde Ariakan?
Steel hesitou. O pensamento de abandonar aquela cela pavorosa, de ser reintegrado no seu comando, de, uma vez mais, cavalgar pelos campos de batalha, quase se tornou insuportável, quase o impeliu a ceder. Viviam-se horas gloriosas para o Senhor de Ariakan, para a Rainha deles. Os exércitos dos Cavaleiros de Takhisis marchavam estrepitosamente contra Ansalon. Ninguém seria capaz de detê-los. Palanthas já caíra. Os cavaleiros preparavam-se para entrar em guerra com os elfos. E Steel veria tudo isso passar-lhe de lado. Acorrentado, com grilhões lhe prendendo as mãos e os pés, fora designado para trabalhar como escravo. Na noite seguinte, atravessaria pela última vez a porta daquela cela, rumo à sua execução.
Não tinha nada para falar com o Senhor de Ariakan. O que lhe contaria? A verdade?
— Subcomandante, lamento — disse Steel, esboçando um pálido sorriso ao ver o óbvio desapontamento do superior. — Não tenho nada a dizer.
Trevalin fitou-o em silêncio, na esperança de que mudasse de idéia. Steel permaneceu mudo, irredutível. Trevalin abanou a cabeça.
— Também lamento, Montante Luzente — disse. — Bom, fiz tudo que estava ao meu alcance. — Pousando fugazmente a mão no braço de Steel, acrescentou: — O nosso batalhão parte hoje. Destacaram-nos para ajudar no combate ao Norte de Ergoth. Pena não poder contar com os seus serviços. Desconfio que nunca mais te verei. Que Sua Majestade das Trevas esteja contigo.
— E contigo também, subcomandante. Obrigado.
Dando meia volta, Trevalin abandonou a cela no exato momento em que o carcereiro entrava.
— É hora de trabalhar, Montante Luzente — disse este.
Steel moveu-se com lentidão, procurando ganhar tempo. Não queria que Trevalin o visse ser levado de uma forma tão ignominiosa da cela, amarrado com grilhões, para ser alinhado com os outros prisioneiros e marchar para as pedreiras. Depois de se certificar de que já não ouvia os passos de Trevalin, Steel saiu da cela.
Juntou-se a um grupo de prisioneiros, Cavaleiros da Solamnia capturados durante a batalha ou que tinham se rendido. Na sua maioria eram jovens — mais jovens do que Steel.
Os Cavaleiros da Solamnia sabiam estar na presença do inimigo. Acreditavam ser ele o responsável pela morte de Tanis Meio Elfo. De início, consideraram-no um espião infiltrado no meio deles. Mas depois souberam a verdade pelos guardas, que Steel perdera um prisioneiro e regressara voluntariamente para enfrentar a punição, que era a morte. Um ato de tamanha coragem e honra que lhe valeu o ressentido respeito dos jovens cavaleiros. Mal lhe dirigiam a palavra, mas deixaram de evitá-lo e, quando se encontrava presente, falavam à vontade uns com os outros. De vez em quando — durante os breves períodos de descanso — tentavam até entabular conversa. Os seus esforços foram rechaçados com frieza.
O desespero de Steel era tão negro que não admitia consolo.
O Senhor de Ariakan não era duro para com os prisioneiros, mas também não usava de brandura. Velava para que lhes dessem alimentos adequados e água — um homem fraco, doente, não agüenta trabalhos duros —, mas obrigava-os a labutar desalmadamente e sempre que pretendia que se esforçassem mais, não poupava o chicote. Ariakan alcançara uma grande vitória, mas ainda não ganhara a guerra.
Conhecia os dragões, sabia não serem dignos de confiança. Supunha que os dragões prateados e dourados haviam batido em retirada para se reagruparem, para convocarem outros da sua espécie, e se preparavam para atacar de novo em força. Mantinha as suas tropas em alerta e fazia os prisioneiros trabalharem dia e noite na reconstrução, reparação e reforço da Torre do Sacerdócio Supremo.