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— Raistlin, deixe-me acendê-lo só uma vez! Por favor! Desculpe aquela vez que te tirei os óculos mágicos. Se encontrá-los eu devolvo. É tão esquisito os meus dedos terem ficado assim tão hirtos, não é?...

Raistlin conseguiu libertar o bastão das mãos de Tas e, colocando-o numa parte distante do laboratório, encostou-se à parede. O arquimago parecia tão relutante como o kender em separar-se dele. Acariciou com a mão a madeira e os seus lábios moveram-se, possivelmente recitando a linguagem da magia.

Mas nada aconteceu.

Raistlin retirou a mão e, virando-se, dirigiu-se para a gigantesca mesa de pedra, acendeu outra vela, levantou-a e examinou Palin.

— Tas? — murmurou o jovem num fio de voz.

— Estou aqui, Palin! — Esquecido do bastão, Tas virou-se para o doente. — Como se sente?

— O meu braço parece que queima... mas o resto do meu corpo está tão frio — respondeu Palin, rilhando os dentes. — Que... que aconteceu?

— Não estou bem certo — replicou Tas. — Eu disse “olá” e ia trocar um aperto de mão, e a seguir vi que a Kitiara segurava a espada e se preparava para te trespassar. Depois, o Raistlin saltou por cima de mim e tirei uma soneca.

— Quê? — Por uns momentos, Palin sentiu-se confuso, depois, a memória voltou. Quase sem forças, tentou sentar-se. — O Portal! A Rainha das Trevas! Temos... temos que voltar...

— Já voltamos — respondeu Tas, obrigando suavemente Palin a se deitar de novo. — Estamos no laboratório. O Raistlin também.

— Tio? — Palin fixou o clarão que refletia o rosto de pele dourada, emoldurado por cabelos longos e brancos. — Afinal, você veio!

— Palin, ele atravessou o Portal para te salvar — explicou Tas. Um rubor de prazer reavivou o rosto descorado de Palin.

— Obrigado, tio — disse. — Estou-lhe muito grato. — Voltando a deitar-se, fechou os olhos. — Que me aconteceu? Sinto tanto frio...

— Foi atingido por uma arma amaldiçoada do Abismo — explicou Raistlin. — Felizmente, a espada só te feriu a carne. Se tivesse varado o coração, agora estaria servindo Chemosh. Mas, como as coisas se apresentam, acho que tenho qualquer coisa aqui que te dará algum alívio.

Raistlin voltou para a parte mais recuada do laboratório, a fim de examinar uma série de frascos de boca larga que se encontravam alinhados numa prateleira coberta de pó.

— Quem era aquela mulher? — perguntou Palin, com um calafrio. — Alguma serva da Rainha das Trevas?

— De certo modo, sim, embora não duvide que agisse por conta própria e não porque a ordenaram. Era a minha irmã — replicou Raistlin —, Kitiara, a sua falecida tia.

— Não há dúvidas que o dia de hoje assinalou o ponto de encontro entre uma leva de velhos amigos — comentou Tas. — Bom, acho que agora já não podemos considerar a Kitiara uma amiga, embora o fosse, há muito tempo. Ora, lembro-me da ocasião em que estava numa caverna e me salvou de um papão. Como haveria de saber que os papões dormem o Inverno inteiro e acordam esfomeados? Mas, foi-se. — Tas soltou um suspiro. — E agora o Tanis também se foi. Tantos que já se foram... Mas, pelo menos — acrescentou, mais animado —, o temos de volta, Raistlin.

— Assim parece — replicou Raistlin e, quase de imediato, foi sacudido por um acesso de tosse, que o obrigou a se dobrar. Enclavinhando as mãos no peito, lutou para respirar. Por fim, o espasmo cedeu. Limpando os lábios com a manga da veste, soltou um arquejo. — Asseguro-lhe que o meu regresso não foi intencional.

— Tentou voltar — acrescentou Tas —, mas, quando o fez, as cabeças começaram a gritar para nós. Na realidade, foi muito excitante. Então, o Raistlin desceu a cortina. Acha que seria possível eu dar uma espiada? Só para ver se as cabeças estão...

— Não se aproxime! — replicou Raistlin. — Caso contrário vai se encontrar tirando outra sesta! E olha que não será breve!

Encontrando o frasco que procurava, o arquimago retirou-o da prateleira e retirou o bujão. Cheirou o conteúdo, aquiesceu com a cabeça e dirigiu-se para Palin.

Depois, Raistlin espalhou sobre a ferida um ungüento azulado.

— É capaz de arder — disse.

Rilhando os dentes, Palin inspirou fundo.

— Suponho que não nos era permitido ouvir os deuses às escondidas — disse. Soerguendo-se espreitou por cima do ombro, tentando examinar a ferida. Os vincos de dor que lhe sulcavam o rosto suavizaram-se. A respiração tornou-se mais fácil e deixou de tremer. — Já me sinto melhor. É magia?

— É — respondeu Raistlin —, mas não feita por mim. Trata-se de uma dádiva por parte de um sacerdote de Paladino.

— Lady Crysania, suponho — interveio Tasslehoff, esboçando um sábio aceno com a cabeça. — Tinha-o em grande consideração, Raistlin.

O rosto do mago mostrou-se impávido, soturno. Virando-se, dirigiu-se para as prateleiras e começou a examiná-las de novo.

— Tas! — sussurrou Palin, chocado. — Cale-se!

— Porquê? — replicou Tas baixinho, com voz áspera. Começava a sentir-se zangado. — É verdade.

Palin lançou ao tio um olhar constrangido, mas se Raistlin os escutou não o deu a entender, pois ignorou-os.

Tas sentiu a cabeça doendo. Estava profundamente infeliz por pensar que Tanis partira, que nunca mais ouviria as suas gargalhadas, o veria sorrir, lhe tomaria os lenços emprestados. Para aumentar a desgraça, ainda por cima sentia-se enfadado.

Tas sabia muito bem que, se se atrevesse até mesmo a olhar para o morcego morto que havia no laboratório, Raistlin e Palin gritariam co ele. E se o fizessem, a dor que lhe latejava no peito o obrigaria a gritar e possivelmente a dizer coisas que lhes feririam os sentimentos. Isso significava que um deles podia acabar transformando-o — a Tasslehoff Pés Ligeiros — num morcego, e embora a idéia fosse engraçada...

Tasslehoff dirigiu-se para a porta do laboratório. Tentou abri-la, mas esta não se mexeu.

— Raios! Estamos trancados! — exclamou.

— Não, não estamos — disse Raistlin com frieza. — Sairemos quando eu estiver pronto para partir. Não antes.

Tas olhou para a porta com ar pensativo.

— Que calma reina lá fora — disse. — Quando partimos, o Steel parecia um furacão, aos murros na porta. Acho que ele, o Dalamar e a Usha se cansaram e foram jantar.

— Usha! — gritou Palin, levantando-se. Quase de imediato, deixou-se cair, exaurido, numa cadeira. — Espero que esteja bem. Tio, tem que conhecê-la!

— Já a conhece — salientou Tas. — Bom, mais ou menos. Visto que é filha dele...

— Filha! — bufou Raistlin. Estava retirando folhas perfumadas de um grande saco e introduzindo-as num pequeno alforje de couro. — Se afirma isso, é porque mente. Não tenho nenhuma filha.

— Ela não é mentirosa. As circunstâncias foram... hum... singulares, tio — respondeu Palin, na defensiva. Levantou-se da cadeira, dirigiu-se para o canto onde se encontrava o bastão e pegou-o. Quase de imediato, pareceu sentir-se mais forte. — Pode ter tido uma filha e não sabê-lo. Por causa da magia dos Irdas.

Tossindo, Raistlin começou a abanar a cabeça e depois levantou-a.

— Irdas? O que têm os Irdas a ver com isto?

— Eu... Bom, tio, é uma história que as pessoas contam a seu respeito. Meu pai nunca lhe prestou grande atenção. Sempre que alguém a mencionava, dizia que era tudo uma tolice.

— Estou interessado em ouvir essa lenda — disse Raistlin, com um pálido sorriso nos lábios delgados.

— Correm por aí diversas versões mas..., de acordo com a maior parte... você e o meu pai voltavam do Teste na Torre de Wayreth. Você estava doente. O tempo começava a fechar. Ambos se detiveram numa estalagem, para descansar. Entrou uma mulher que perguntou se podia passar a noite lá. Estava agasalhada e vestia uma capa. Alguns rufiões a atacaram. Você e o meu pai a salvaram. A mulher tentou manter o rosto oculto, mas o lenço caiu. Era linda — disse Palin com brandura. — Tio, sei como deve ter se sentido quando olhou para ela! Senti o mesmo. — Sorrindo, calou-se, imerso na sua própria fábula.