— E depois, o que aconteceu? — perguntou Raistlin, arrancando o jovem do devaneio.
— Bom, hum — tartamudeou Palin. — Para abreviar a história, que é longa, você e ela... bom...mmmm...
— Fizeram amor — interrompeu Tas, vendo que, chegado a este ponto, Palin se mostrava bastante confuso. — Você dois fizeram amor, só que você não soube, por causa da magia dos Irdas, e ela teve um bebê com olhos dourados e os Irdas apareceram e levaram o bebê.
— Fiz amor com uma linda mulher e não soube. Que sorte a minha — observou Raistlin.
— Não foi bem assim que aconteceu. Ela tem que te contar. Vai gostar dela, tio — prosseguiu Palin, com entusiasmo. — É encantadora. E bondosa. E muito, muito linda.
— Tudo isso prova que não é minha filha — retrucou Raistlin em tom cáustico. Fechando o alforje de couro, pendurou-o cuidadosamente à cintura. — Agora é melhor partirmos. Há muito o que fazer e pouco tempo para concretizá-los. Receio que tenham se passado dias demais.
— Dias? Não, tio. Quando partimos, era de manhã. Por esta altura, já entardeceu. — Palin fez uma pausa e relanceou o olhar pelo laboratório. — Não quer levar nenhum dos teus livros de encantamento? Já me sinto melhor. Podia ajudá-lo a carregar...
— Não, não quero — replicou Raistlin em tom calmo, sem olhar na direção dos mesmos.
Palin hesitou e depois disse:
— Então, não se importas se eu levá-los? Estava na esperança de que pudesse me ensinar alguns dos encantamentos.
— Encantamentos do grande Fistandantilus? — perguntou Raistlin, parecendo muito divertido. — Sobrinho, antes de poder ler aqueles encantamentos, as suas vestes tinham que se tornar mais escuras.
Palin mostrou-se calmo.
— Talvez não, tio — disse. — Sei que nos anais da história das Três Luas não consta que nenhum Veste Negra tenha tomado como aprendiz um Veste Branca. Mas isso não significa que seja impossível. Meu pai me contou que uma vez, quando o Tio Tas foi envenenado no Templo de Neraka, você transformou um encantamento para roubar a vida num encantamento de dádiva da vida. Sei que será uma tarefa demorada e difícil, mas farei tudo... sacrificarei tudo — acrescentou com ênfase — para obter mais poder.
— Fará? — Raistlin fitou intensamente Palin. — Mesmo? — Erguendo a sobrancelha, acrescentou: — Veremos, meu sobrinho. Veremos. E agora — encaminhou-se para a porta —, temos que partir. Conforme eu disse, o tempo urge. É crepúsculo, sim, mas não o do dia em que se foi. Em Ansalon se passou um mês.
Palin arquejou.
— Mas, não é possível! — exclamou. — Passaram-se... apenas umas horas...
— Talvez para você, mas o tempo, tal como o conhecemos neste plano de existência, no domínio dos deuses nada significa. Faz agora um mês, neste mesmo dia, Lorde Ariakan atravessou, triunfante, os portões da Torre do Sumo Sacerdócio. Uma vez esta caída, nada conseguiu detê-lo. A cidade de Palanthas é governada pelos Cavaleiros de Takhisis agora.
Tas encontrava-se junto da porta e, pelo buraco da fechadura, tentou espiar lá para fora.
— E se o espectro ainda estiver ali fora? — perguntou.
— O guardião se foi. O Dalamar encontra-se aqui, mas não por muito tempo. Em breve, tal como nos dias que precederam o Cataclismo, a torre ficará deserta.
— O Dalamar vai partir! Eu... não posso acreditar! — Palin parecia aturdido. — Tio, se os cavaleiros das trevas assumiram o controle, para onde nós iremos? Nenhum lugar é seguro.
Raistlin não respondeu.
E o seu silêncio parecia algo irreal.
— Sonho há tanto tempo com isto — disse Raistlin baixinho. — Iremos para casa, sobrinho. Quero ir para casa.
LIVRO 4
1
Um mundo em mudança.
A estalagem.
O visitante inesperado.
Após a queda de Palanthas, seguiu-se a do Norte de Ansalon. Assegurado o domínio da grande e antiga cidade, tendo à disposição as riquezas desta e franqueado o seu porto aos navios dos dragões negros, Ariakan não perdeu tempo a apoderar-se de todo o território, que facilmente lhe cairia nas mãos, e dedicou-se ao reforço das tropas para as batalhas que se adivinhavam difíceis e prolongadas.
Os boatos revelaram-se a sua melhor arma. Difundiam-se com maior rapidez do que os seus próprios cavaleiros a voar, montados nos dragões azuis. Por toda a parte se ouviam cochichos sobre histórias de exércitos, conduzidos pelo Senhor de Loth, formados por esqueletos guerreiros, que chacinavam qualquer ser vivo e lhe bebiam o sangue. Por toda a parte se acreditava nelas. O clima de terror também se adensava com o medo dos dragões e com as histórias dos cruéis bárbaros, que, dizia-se, enfiavam crianças em espetos e as assavam vivas nas fogueiras. Quando as tropas afluíam às cidades principais, o pânico dos habitantes era tal que, sem oferecerem a mínima resistência, escancaravam os portões e convidavam os cavaleiros das trevas a atravessá-los.
Passara-se um mês e Ariakan controlava Nordmaar para leste, as montanhas de Kalkhist para sul até às planícies da Poeira para oeste até Solamnia e Abanasínia. A Ergoth do Norte ainda resistia, os seus habitantes, uma raça de marinheiros de pele escura, prosseguiam encarniçados os combates, recusando-se a desistir. Dizia-se que os duendes das colinas estavam oferecendo uma enérgica resistência nas montanhas de Kalkhist, onde draconianos renegados tinham se juntado à refrega. Ariakan não tentara ainda apoderar-se dos territórios elfos de Silvanesti e Qualinesti, pois sabia que os custos da batalha seriam elevados. Em vez disso, aguardava que o fruto lhe caísse nas mãos, apodrecido por dentro.
Ignorava, por ora, as planícies do Pó, considerando-as de pouca valia. Quando o resto do continente estivesse sob o seu jugo, então dizimaria as tribos dispersas do Povo das Planícies, chefiadas pela sacerdotisa Lua Dourada e por seu esposo Vento do Rio.
Quanto aos gnomos do Monte Não Se Rale, infelizmente tombaram por suas próprias mãos. Tendo ouvido rumores sobre a alegada invasão dos cavaleiros das trevas, os gnomos acionaram febrilmente todos os engenhos bélicos mais poderosos de que dispunham. Desconhece-se com exatidão o que correu mal, mas uma portentosa explosão abalou o Norte e o Sul de Ergoth. Elevou-se no céu uma imensa nuvem de fumaça acre, que durante uma semana pairou sobre a montanha. Dizia-se que, quando esta se dissipou, grande parte do pico da montanha desaparecera. Havia notícias de grandes baixas, mas ouvia-se de novo ecoar pela montanha o estrépito de ferros e de pancadas. Segundo a filosofia dos gnomos, essa coisa de catástrofe não existia — havia apenas oportunidades.
Kendermore não caíra sem antes oferecer resistência, em larga medida devido aos esforços de Paxina, a perspicaz chefe militar dos kenders e filha de Kronin Protuberância de Cardo, um herói das Guerras do Dragão. Paxina Protuberância de Cardo Fedorenta ouvira dizer que o Senhor de Ariakan considerava os kenders um “estorvo inútil” e planejava capturar a todos e condená-los à morte. Paxina comunicou-o ao seu povo, esperando incentivá-los à batalha. Foi acolhida com encolher de ombros, bocejos e “Quais as novidades?”
Tornava-se necessário algo mais que fizesse bulir o sangue dos kenders. Paxina meditou no assunto e depois espalhou o boato de que os cavaleiros das trevas se preparavam para saquear Kendermore e despojar os kenders dos seus bens mais preciosos.
O ardil funcionara.
Apavorados, os kenders opuseram uma resistência tal que, embora vencidos por Ariakan, conquistaram a admiração deste, levando-o a concluir que, afinal, os kenders podiam revelar-se úteis se conseguisse persuadi-los a servir a Rainha das Trevas. Deste modo, Kendermore sobreviveu, para desagrado dos cavaleiros obrigados a prestar serviço lá.