Tika abanou a cabeça mas, não contestou. Falar de Tanis ainda a deixava perturbada. Ainda tinha bem gravada na mente a noite em que Laurana aparecera para lhes comunicar as tristes novas da sua morte: os três, sentados no escuro, porque receavam acender uma candeia, a falar dos velhos tempos e a entremeá-los com lágrimas.
— Além disso — prosseguiu Caramon, continuando discretamente a cortar mais queijo e a estendê-lo à mulher —, os maus tempos contribuem para que as pessoas se aproximem... vimos acontecer isso durante a Guerra da Lança.
— Os exemplos são escassos e dispersos — murmurou Tika. — Muitos correram logo a desfraldar a bandeira branca e Takhisis conquistou os vizinhos deles.
— Ora vamos, minha querida, tenho as pessoas em melhor conta — respondeu Caramon. — E, para acabar, o que me diz de um pedaço de torta de framboesa agora?
Tika baixou os olhos, viu as migalhas do pão, do queijo e dos bolinhos e desatou a rir. Logo as gargalhadas se transformaram em lágrimas, mas eram lágrimas de amor e não de tristeza. Dando uma palmadinha na mão enorme do marido, disse:
— Agora percebo o teu plano e não, não quero torta nenhuma, depois de todos os bolinhos que comi. Obrigada, mas já comi o suficiente.
— E também recuperou o tempo perdido. Comeu mais em dez minutos do que em dez dias — disse Caramon com voz severa. — Tem que se manter forte, minha bem-amada. — Aninhando a mulher nos braços, acrescentou em voz rouca: — E também não quero perdê-la.
Tika encostou-se ao marido e, como sempre, sentiu que era o seu melhor bálsamo, o seu maior conforto.
— Não vai me perder, meu adorado. Prometo que vou começar a cuidar melhor de mim. Só que... estou sempre pensando em Palin — Suspirou e, da janela, perscrutou a escuridão. — Se o túmulo dele se encontrasse ali, junto dos nossos outros dois meninos, pelo menos eu saberia...
— O túmulo não se encontra ali porque ele não morreu — respondeu Caramon.
— Caramon — argumentou Tika com brandura —, sabe muito bem o que o Dalamar nos disse... Palin e Tas entraram no laboratório e nunca mais saíram de lá. Já passou mais de um mês e não há notícias deles...
— Ele não morreu — disse Caramon, libertando-se do abraço de Tika. — Vou buscar uma chícara de chá de tília para nós dois — acrescentou e dirigiu-se para a cozinha.
Tika preferiu não acompanhá-lo. Caramon tinha que elaborar as coisas à sua maneira. Dando outro suspiro, olhou para toda aquela desordem, suspirou de novo e levantou-se. As guerras e os cavaleiros das trevas iam e vinham. Mas sempre haveriam pratos sujos.
Estava empilhando os pratos quando ouviu o som. Sem saber bem se era o estardalhaço da louça, parou de trabalhar e, sustendo a respiração, pôs-se à escuta.
Nada.
Tentou identificar o ruído.
Passos nas escadas. Passos que eram suaves, furtivos.
Manteve-se por longo tempo quieta, mas não voltou a ouvir o som. Encolhendo os ombros, julgou tratar-se do gato e começou a empilhar de novo os pratos. Colocou-os num tabuleiro e dirigia-se para a cozinha com este nas mãos, quando ouviu o raspar de metal contra a madeira.
Virando-se, viu a tranca da porta levantar-se, sem que ninguém mexesse, e a porta se abrindo.
Tika pousou com violência o tabuleiro, pegou na caçarola e precipitou-se para trás da porta. Quaisquer cavaleiros das trevas que tentassem levá-la, ao marido ou às filhinhas, ficariam com a cabeça rachada...
— Que se...? — perguntou Caramon, irrompendo da cozinha.
— Chiiu! — Tika levou o dedo aos lábios e levantou a caçarola.
Alguém abriu a porta e entrou. Tika não conseguia enxergar bem. Apesar do calor, o homem vestia uma capa cinzenta. Apenas vislumbrando o alvo, a nuca deste, fez pontaria...
Caramon soltou um rugido e precipitou-se para a frente, derrubando mesas e espatifando cadeiras.
— Palin! — murmurou Tika. Muito estupefata para poder mover-se, encostou-se, esvaída, à parede e, com os olhos marejados de lágrimas, ficou a ver o marido estreitar o filho nos braços.
— Onde está a mãe? — perguntou Palin, olhando ao redor.
— Escondida atrás da porta — respondeu Caramon, lavado em lágrimas. — Se preparando para te atacar com a caçarola!
Corando, Tika brandiu a caçarola, largou-a com estrépito e correu para o filho.
— Palin, meu querido Palin! — disse, rindo e chorando. — Passei este tempo todo a rezar para que voltasse são e salvo, e agora que está aqui, quase te ataco! Pensei que era... um deles.
— Está tudo bem, mãe — disse Palin, estreitando-a nos braços. — Eu compreendo. Sei o que está acontecendo por estas bandas. Falamos com o Dalamar.
— Nós? — observou Tika, olhando por trás dele. Avançando, Palin fitou os pais.
— Mãe, Pai. Encontra-se alguém comigo que vocês não vêem há muito tempo. Quis que eu dissesse primeiro. Ele... não tem certeza se será bem-vindo...
Soltando um grito desvairado, repassado de dor, Caramon precipitou-se para a porta e escancarou-a.
No alpendre encontrava-se uma figura envolta em vestes negras, que sumia nas trevas. Ao ver Caramon, o vulto retirou o capuz que lhe cobria a cabeça. A luz que escoava da estalagem foi refletir-se na pele dourada e reluziu-lhe nos olhos em forma de ampulheta.
— Raist! — gritou Caramon, cambaleando.
Raistlin olhou demoradamente para o irmão e não se moveu.
— Caramon — disse, por fim, em voz doce, e o nome pareceu liquefazer-se no sangue do coração. — Caramon, será que, será que... — Começou a tossir, mas dominando-se prosseguiu: — Que me perdoa...
Aproximando-se, Caramon puxou o irmão para dentro.
— O teu quarto está pronto, Raist. Sempre esteve.
2
Mágoas.
Instruções.
Escolhas.
O Sol que nascia e que, àquela hora matinal, já envolvia tudo numa bola ardente, cintilou nos vidros manchados das janelas da estalagem. Sentados, os irmãos gêmeos viram-no despontar. Tika fora se deitar há muito, assim como Palin, que se encontrava ainda um pouco exaurido por causa da ferida. Caramon e Raistlin permaneceram de pé, relembrando, pela noite afora, o passado distante, os tempos antigos, os erros antigos e as mágoas antigas.
— Raist, se soubesse que desfecho iria ter, escolheria de outro modo? — perguntou Caramon.
— Não — replicou Raistlin, com uma réstia da sua velha irritabilidade. — Porque se soubesse, não teria que optar.
Caramon não entendeu lá muito bem, mas acostumado a não compreender o irmão, não permitiu que isso o afligisse. Compreendia o suficiente. Pôs-se então a falar com o irmão a respeito da família.
Raistlin encontrava-se aninhado a um canto, segurando nas mãos uma chávena de chá que lhe acalmou a tosse. O arquimago escutava as histórias de Caramon, na sua mente, Palin e os irmãos perfilavam-se com nitidez, sabia coisas deles que Caramon desconhecia. Todos esses anos passados naquele local distante, em paz no seu torpor comatoso — tais visões haviam constituído os sonhos de Raistlin.
Só na hora mais negra que antecede a aurora falaram do presente... e do futuro.
Pela janela, Caramon fitava agora, com ar perturbado e aflito, o Sol a erguer-se por entre a frágil folhagem castanha do bosque do vale.
— O fim de todas as coisas, você diz — murmurou. — De todas as coisas — repetiu, virando-se para encarar o irmão. — Sei que vou morrer. Tudo, até os elfos, tem que morrer. Mas... sempre pensei que isto — fez um gesto, a abranger as janelas, as árvores, a erva, a sujeira e o céu sem nuvens — continuaria a existir depois de eu desaparecer. Você diz que nada... nada, restará?