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— Quando o Caos aparecer para destruir este “brinquedo dos deuses”, o solo se abrirá, e das fendas jorrará fogo. Um vento, tão raivoso como mil tempestades, se precipitará rugindo dos céus, para atiçar as chamas. Dragões de fogo, conduzidos por guerreiros demoníacos, sobrevoarão a terra e em pouco tempo o fogo consumirá tudo. Os lagos evaporarão e as águas dos oceanos ferverão. O próprio ar se converterá num braseiro e, só de o respirar, as pessoas morrerão. Nada nem ninguém sobreviverá.

Raistlin falou num tom calmo, inexpressivo, que era profundamente convincente e assustador. As palavras que proferiu provocaram um calafrio de terror em Caramon.

— Fala como se o tivesse presenciado — disse em voz baixa.

— Presenciei — respondeu Raistlin. Desviando o olhar do vapor que evolava do chá, fixou-o no irmão. — Esqueceu o que vi com estes meus olhos malditos. Vi o tempo mover-se em frente e vi assim o tempo deter-se.

— Mas, não tem que ser assim — argumentou Caramon. — Isso sei eu. O futuro é o que construímos.

— Tem razão — concordou Raistlin. — Há alternativas.

— E? — insistiu Caramon, que nunca perdia a esperança.

Raistlin voltou a fixar o chá que esfriava.

— Meu irmão, descrevi o que pode acontecer de pior. — Calou-se, pensativo, e acrescentou: — Ou possivelmente de melhor.

— Quê!? — exclamou Caramon, chocado. — De melhor? As pessoas a serem queimadas vivas! Os oceanos a ferverem! É isso o melhor?

— Meu irmão, depende da forma como encararmos as coisas — respondeu Raistlin, empurrando o chá para o lado. — Não consigo beber isto. Está ficando frio. — Tossindo, aconchegou-se nas vestes, embora, no interior da estalagem, já se respirasse um calor sufocante.

— Não podemos ficar aqui sentados de braços cruzados! — protestou Caramon levantando-se e dirigindo-se para a cozinha. Regressou com uma chaleira de água quente. — Lutaremos, lutaremos ao lado dos deuses, se isso for necessário!

— Oh, sim — respondeu Raistlin. — Lutaremos. E muitos de nós morrerão. E pode até ser que vençamos. E seria possivelmente essa a maior perda de todas.

— Raist, não compreendo... — começou Caramon.

— Raist, não compreendo... — imitou-o Raistlin, com ar de troça. Embaraçado, Caramon corou e olhou para os pés.

Raistlin deu um suspiro.

— Caramon, desta vez nem eu compreendo. Não, não me sirva mais chá. Não há tempo. Temos à nossa frente uma longa jornada.

— Nós? Quer... quer que te acompanhe? — perguntou Caramon, hesitante.

— É claro! — replicou Raistlin com brusquidão. — Preciso do apoio dos teus braços fortes. E é o único que sabe fazer esta mistela como deve ser — acrescentou, indicando a caneca de chá.

— Claro, Raist. Te acompanharei para onde quer que seja. Onde vamos?

— À Torre de Wayreth. O Dalamar irá se encontrar conosco lá. Convocou um Conclave dos Feiticeiros.

— Então, levaremos o Palin conosco...

— Não, o Palin tem outra missão. Deve seguir para Palanthas.

— Sozinho? — inquiriu Caramon, franzindo o cenho. — Mas, correrá perigo na estrada...

— Ele não vai pela estrada — interrompeu-o Raistlin, irritadiço.

— Ah, vai usar a magia para conduzi-lo até lá — disse Caramon.

— Não, não vou. A propósito de Palin, tenho que falar com ele. Vamos, vamos meu irmão — prosseguiu Raistlin, vendo que Caramon se mantinha parado, com a chaleira do chá na mão. — Apresse-se! Cada minuto que passa aproxima-nos mais da catástrofe! Precisamos nos aprontar para partir dentro de uma hora.

— Claro, Raist — disse Caramon, dirigindo-se para a cozinha.

Parando à entrada, ficou a observar o irmão. Levantando-se vagarosamente, Raistlin apoiou-se na mesa para se erguer. Outrora, há uma infinidade de tempo, recorreria ao bastão para se firmar. Fazendo uma pausa, pegou na bolsa que continha a mistura de chá e pendurou-a no cinto que lhe rodeava a cintura. Deste, não pendiam outras bolsas nem dele se desprendeu o perfume de pétalas de rosa. Não transportava consigo nenhum cofre contendo pergaminhos, nenhum livro...

Foi então que Caramon compreendeu.

— Despojaram-te da sua magia, não foi, Raistlin? — perguntou com brandura.

Raistlin guardou um demorado silêncio e, com um modo estranho, respondeu:

— Meu irmão, reparei que não bebe nada mais forte do que água.

— Sim — respondeu Caramon, sereno. — Mas o que...?

Como se não ouvisse, Raistlin prosseguiu:

— Só água porquê? Porquê?

— Raistlin, sabe porquê. As bebidas alcoólicas dos duendes apoderam-se de mim Quando começo, não consigo parar... — Caramon fez uma pausa, o rosto retorcido num esgar de perplexidade. — Quer dizer que é a mesma coisa? Que você...?

— Talvez não conseguisse resistir à tentação — disse Raistlin serenamente.

— Mas... o que está por acontecer. Não vamos precisar de você?

— Temos o Palin — respondeu Raistlin.

O rubor de Caramon desvaneceu-se. Ficou pálido, com ar infeliz.

— Raistlin, não fala sério. Ele ainda é novo e tem uma categoria inferior...

— Eu também, meu irmão — respondeu Raistlin com brandura. — Eu também.

Caramon engoliu em seco.

— Sim, mas você... Bom, você...

— Tive ajuda? — repetiu Raistlin, com um sorriso escarninho. — Sim, tive ajuda. O Fistandantilus estava comigo. E o Palin também terá ajuda. Também terá... — Tossiu e voltou a afundar-se na cadeira. — Mas, não se preocupe, meu querido irmão. Tal como eu, o Palin poderá optar.

O esclarecimento não trouxe nenhum alívio a Caramon. Afastando-se, deixou o irmão gêmeo sentado à mesa, a observar a alvorada, que ardia como uma chama de Verão.

Palin desceu para tomar o desjejum e deparou com a casa num rebuliço. A mãe encontrava-se postada ao balcão, cortando fatias de pão quente com frutas, que cozia sempre que alguém da família partia em viagem. Os rapazes chamavam-lhe o “Pão Ambulante”, pois comiam-no enquanto efetuavam o trajeto, embora, como Sturm, o irmão mais velho dizia com ar de brincadeira, o pão fosse suficientemente duro para permitir que caminhassem sobre ele enquanto comiam.

O cheiro evocou-lhe reminiscências vívidas e dolorosas ao mesmo tempo. Palin viu-se forçado a parar no vão das escadas e a apoiar-se no bastão até que se dissipasse a névoa que lhe toldava os olhos e o aperto que sentia na garganta. Desceu quando Caramon apareceu, trazendo um grande alforje, que pousou junto à porta.

— Pai — disse Palin, espantado —, vai conosco até Wayreth?

— Ele vai comigo, Palin — disse Raistlin, virando-se. — Folgo por te ver acordado. Ia agora mesmo acordá-lo.

— Mas, eu também os acompanho! — protestou Palin. — Sinto-me ótimo. O meu ombro ainda está um pouco rígido, mas esta manhã apliquei um pouco mais daquele ungüento e a ferida está cicatrizando...

— Que ferida? — perguntou Tika com brusquidão, interrompendo o trabalho.

— Um ferimento ligeiro que sofreu durante as suas viagens. Nada de grave — interveio Raistlin.

— É o que veremos. Caramon, acabe de cortar este pão e meta alguns naqueles alforjes. Quanto a você, meu menino, sente-se para eu poder examiná-lo. Por que não despiu a capa a noite passada, pode me dizer?

— Mãe! — exclamou Palin, com as faces a arder e lançando um olhar envergonhado ao tio. — Não há problema, mãe, de verdade. Não precisa ficar tão preocupada...

— Tika — interrompeu Caramon —, não há tempo...

Ela virou-se, de mãos nas ancas.

— Caramon Majere, será que dentro de cinco minutos vamos ser atacados por dragões?