— Ora, não — começou Caramon —, mas...
— Então temos tempo — respondeu Tika, apontando para uma cadeira. — Sente-se ali, rapazinho, e deixe-me ver esse ombro. Que destino deu às roupas ensangüentadas? Escondeu-as debaixo da cama, como costumava fazer quando era criança?
Palin procurou auxílio, mas o pai, já derrotado, batia em retirada. Esboçando um pálido sorriso, o tio aproximou-se e sentou-se em frente de Palin.
— Sobrinho, preciso te dar umas instruções — disse Raistlin. — Além disso, por vezes é bom que “façam alarido” por nossa causa.
Parando de cortar o pão, Caramon olhou, estupefato, para o irmão. Depois, com um sorriso algo triste, o grandalhão, abanando a cabeça, começou a guardar o pão nos alforjes.
Desembaraçando-se da manga da veste, Palin submeteu-se ao exame de Tika.
Tika apalpou, picou, espreitou, cheirou e disse, com um aceno de cabeça:
— Está cicatrizando bem, mas tem que ser lavada. Há pedacinhos de filamentos entranhados. Já volto.
Dirigiu-se para cozinha, a fim de ir buscar água quente e um pano.
— E agora, sobrinho — disse Raistlin — eis as tuas instruções. Eu e o teu pai partiremos para Wayreth. Quero que regresse a Palanthas...
Palin abriu a boca para protestar.
— Essa jovem a que se referiu — prosseguiu Raistlin .— A que afirma ser minha filha. Quero que a encontre.
Palin calou o protesto.
— Sim, tio — disse, de uma forma tão rápida e ansiosa que o pai, erguendo a cabeça, dardejou o filho com um olhar longo e incisivo. — Então, acredita na história dela?
— Não — respondeu Raistlin com frieza —, mas, a relação que tem com os Irdas me deixa intrigado.
— Tio, será um prazer localizá-la para você — observou Palin, ignorando o sorriso do pai e o seu assobio brejeiro —, mas, tem certeza de que ainda se encontra em Palanthas?
— De acordo com o Dalamar, sim. A feiticeira que é companheira dele mantém-se em contato com a jovem. Sabe onde pode ser encontrada.
— Então, você e o Dalamar discutiram o assunto. Por que não fui incluído?
— Estava descansando — replicou Raistlin. — Não quisemos incomodá-lo. Tome. — De um bolso das vestes negras, retirou um anel de aspecto comum e estendeu-o a Palin. — Fique com ele. O Dalamar preparou o teu transporte para Palanthas.
— Ele preparou — repetiu Palin, com um suspiro. Pegou no anel, mal olhou para ele e meteu-o numa bolsa. — Porque eu não conseguiria fazê-lo por meus próprios meios. Mas, você, tio. Você podia lançar o encantamento Alcance entre o Céu e a Terra. Gostaria de ouvi-lo, embora não possa lançá-lo ainda... Que é, pai? O que quer?
Aos poucos, fora tomando consciência da presença do pai, que lhe franzia o cenho e abanava a cabeça.
— Filho, o teu tio não se sente muito bem esta manhã — disse Caramon em tom soturno. — Faça o que ele diz e não o incomode.
Palin reparou que Raistlin parecia extremamente pálido.
— Não tinha intenção... Se não se sente bem, é claro que...
— Sinto-me bem — retorquiu Palin —, pelo menos tão bem como sempre estive. Merece saber a verdade. Sobrinho, deixei de possuir magia. Foi-me retirada. Para regressar a este plano de existência, me vi forçado a obedecer tal requisito
— E não queria voltar! Regressou por minha causa! Tio, eu...
— Deixe de compaixões por mim! — grunhiu Raistlin. Os olhos dourados reluziram com uma expressão feroz, mais quentes do que o Sol.
Sobressaltado, Palin guardou silêncio.
— Aceito isso como um cumprimento — prosseguiu Raistlin, dissipada a cólera. — É sinal de que ela ainda me receia. Mas basta de conversas. Eu e o Caramon já deveríamos estar a caminho. Vá se despedir da Tika e agradeça por mim a hospitalidade. Quero falar em particular com o Palin.
— Claro, Raist — disse Caramon, mas sem esboçar qualquer movimento. Olhou para o filho com ar hesitante.
— Vai lá, Caramon — repetiu Raistlin. Preparava-se para acrescentar algo, mas um acesso de tosse obrigou-o a se calar. — Vai! — arquejou. — Já viu como me irrita?
Hesitante, Caramon olhou para o filho e depois para o irmão gêmeo. Em seguida afastou-se, com ar relutante, em direção à cozinha.
Quando ficaram a sós, Raistlin indicou a Palin para que se aproximasse. Com a garganta inflamada devido à tosse, disse-lhe, num murmúrio:
— Quando localizar essa jovem, esqueci o nome...
— Usha — respondeu Palin com doçura.
— Não me interrompa! Mal consigo ter fôlego para falar! Repito, quando a encontrar, leve-a contigo até à Grande Biblioteca. Me encontrarei lá contigo depois de amanhã, à meia-noite do dia de S. João.
— Compreendo, tio — replicou Palin em tom submisso. — À meia-noite do dia de S. João. Estarei lá.
Raistlin descontraiu e a respiração tornou-se mais fácil.
— E agora, sobrinho, é melhor fazer as despedidas e se por a caminho. O anel não tem nada de complicado. Quando o enfiar no dedo, se formará na tua mente, uma imagem de Paladino, e o encantamento o transportará ao teu destino.
— Sim, tio — respondeu Palin, acrescentando com amargura: — Claro que não tem nada de complicado. Eu não saberia lidar com nada que fosse complicado.
Raistlin olhou-o por um momento em silêncio e, inclinando-se, pousou a mão envelhecida no ombro nu de Palin. O toque do arquimago era inusitadamente quente, quase ardia. Estremecendo, o jovem procurou manter-se quieto, enquanto sentia os dedos esguios morderem-lhe a carne.
Aproximando-se, sussurrou palavras que afloraram a face de Palin:
— Hão de dar-lhe escolhas, tal como a mim. Hão de dar-lhe escolhas.
— Quando? — respondeu Palin, segurando com força a mão do tio. — Em breve? Como saberei?
— Não posso adiantar nada. — Raistlin endireitou-se e recuou. — Já falei mais do que devia. Que a tua escolha seja sensata, sobrinho.
— Será — respondeu Palin, levantando-se. — Há muito que penso nisso. Sei qual será a minha escolha.
— Ainda bem, sobrinho — respondeu Raistlin com um sorriso, e o sorriso gelava.
Sentindo um calafrio, de novo o toque da lâmina maldita, Palin voltou a cobrir o ombro ferido com a veste.
— E agora, rapazinho, vá chamar o teu pai — ordenou Raistlin. — O tempo se move e nós aqui parados.
3
Irmãos.
Juntos de novo.
Há muitas, muitas eras, durante o reinado do Rei-sacerdote de Istar, o mundo era governado pelas forças do Bem — pelo menos era assim que se autodesignavam. Algumas pessoas punham em causa o fato do preconceito, a intolerância, o ódio e a perseguição constituírem, deveras, virtudes de Paladino, mas o Rei-sacerdote camuflara esses pecados cobrindo-os de finas e dispendiosas roupagens brancas, ao ponto de nem sequer se detectar a corrupção subjacente.
O Rei-sacerdote e os seus seguidores temiam tudo o que diferisse das suas pessoas. O rol era longo e todos os dias engrossava, mas os fazedores de magia figuravam no topo. As populaças atacavam os feiticeiros de todos os credos, investindo com virulência contra as suas torres, incendiando-lhes as escolas, matando-os à pedrada ou queimando-os vivos. Graças ao seu poder, os feiticeiros podiam rebater, mas sabiam que, ao fazê-lo, desencadeariam mais banhos de sangue e prejuízos. Optaram pela retirada e abandonaram o mundo para se esconderem no único local seguro: a Torre da Feitiçaria Suprema, em Wayreth.
E era para onde os feiticeiros agora se dirigiam, mas, ironicamente, não fugiam às forças do Bem. Fugiam às forças das Trevas.
Dizem que, se andarmos no rastro da Torre de Wayreth, nunca a encontraremos. A torre é que nos encontra e se isso é bom ou mau, tal dependerá do motivo que nos leva lá. Podemos, uma noite, adormecer num prado em flor, e na manhã seguinte descobrirmos que nos encontramos num ermo. O que esse lugar inóspito decide nos fazer, depende das intenções dos magos da torre.