Todas as criaturas receiam a torre. Até mesmo os dragões — de qualquer cor ou credo — não se atrevem a voar por perto. O dragão negro enviado por Dalamar para efetuar com Raistlin e Caramon o trajeto rápido e seguro sobre as montanhas de Kharolis até aos arredores da torre, restringiria o vôo à estrada.
O dragão negro pousou-os e permaneceu agitado e inquieto, batendo as asas, esticando o pescoço e cheirando o ar, obviamente desagradado com o que quer que fosse que lhe chegava às narinas. Escavou o solo com as garras e mirou Raistlin de soslaio, ansioso por partir, mas tendo o cuidado de não mostrar desrespeito para com o mago. Caramon ajudou o irmão a desmontar e retirou os dois alforjes. O dragão levantou a cabeça, olhando, ansioso, para o céu.
— Pode partir — disse Raistlin à criatura —, mas não se afaste. Mantenha-se de vigia na estrada. Se não encontrarmos o que procuramos, vamos precisar outra vez dos teus serviços.
O dragão inclinou a cabeça e os seus olhos vermelhos emitiram chispas. Abriu as asas negras e, dando impulso com as patas traseiras, descolou do solo e elevou-se no ar, rumo ao norte.
— Argh — queixou-se Caramon, fazendo uma careta e, repugnado, arremessando os alforjes ao chão. — Que cheiro! Parece que a morte passou por aqui. Faz-me recuar àquela época, em Xak Tsaroth, quando o dragão negro te capturou e teria acabado com todos nós, não fosse a Lua Dourada aparecer com o bastão de cristal azul.
— Capturou? Não me lembro — observou Raistlin com desenvoltura. Inclinando-se, esquadrinhou o alforje pessoal e dele retirou duas bolsas que guardara antes de partirem e pendurou-as ao cinto.
Caramon fitava-o com ar atônito.
— Não se lembra? O Bupu, o Highbulp e o Vento do Rio, que morreram e ressuscitaram e...
Raistlin permanecia na estrada poeirenta, a olhar para um campo de aveia seca e mirrada. Examinou-o longa e detidamente, procurando algo e, ao que parece, não o encontrando. Franziu o cenho, comprimiu os lábios e abanou a cabeça.
— O tempo — murmurou. — O tempo está se escoando. Que aqueles doidos estarão fazendo?
— Não se lembra de Xak Tsaroth? De nada? — insistiu Caramon. Raistlin virou a cabeça para o irmão.
— Que disse? Oh, a guerra — disse, encolhendo os ombros. — Já que fala nisso, lembro-me de qualquer coisa. Mas, parece que tudo aconteceu com outra pessoa e não comigo.
Caramon olhou com tristeza e angústia para o irmão. Raistlin voltou a encolher os ombros e virou-se.
— Meu querido irmão, temos problemas mais urgentes. A floresta não fica aqui.
— Parece-me que nunca está quando desejamos — resmungou Caramon. — Age como se não a quiséssemos. Escreva o que eu digo, vamos descobri-la bem por cima de nós. Gostaria de saber se por estas bandas ainda há algum ancoradouro que não tenha secado ainda. Tenho que retirar das mãos o muco viscoso do dragão antes que vomite!
Olhou em redor e prosseguiu:
— Talvez naquele maciço de árvores, ali. Raistlin, está vendo? Perto do salgueiro gigantesco? Os salgueiros crescem em zonas úmidas. Vamos por ali?
— Parece que qualquer lugar é bom — murmurou Raistlin, mal humorado. Os dois saíram da estrada e atravessaram o campo. O caminho era penoso. Hastes de aveia morta e ressequida irrompiam do solo causticado, perfurando as solas de couro das botas de Caramon e rasgando a fímbria das vestes de Raistlin. O calor do entardecer asfixiava e o Sol continuava a dardejá-los com os seus raios inclementes. A poeira que levantavam à passagem, cobria-lhes o rosto, provocando espirros em Caramon e provocando tosse em Raistlin, ao ponto deste se ver forçado a apoiar no braço do irmão para continuar firme.
— Espere aqui, Raist — disse Caramon por fim, depois de percorrerem mais de metade do percurso até o bosque. — Eu vou lá.
Tossindo, Raistlin abanou a cabeça e apertou com força o braço do irmão.
— Que foi? — perguntou Caramon, ansioso. Arquejante, Raistlin conseguiu murmurar:
— Schiu! Ouvi... qualquer coisa.
Caramon olhou rapidamente ao redor.
— O quê? Onde?
— Vozes. No bosque. — Sufocado, Raistlin tentou inspirar.
— Engoliste muita poeira — disse Caramon, preocupado. — Que faremos? Voltamos para trás?
— Não, meu irmão. Levantaria suspeitas. Fizemos mais barulho do que um exército de duendes. Fomos vistos e ouvidos. Agora é a nossa vez. Quero dar uma olhada em quem está nos observando.
— Provavelmente é o lavrador proprietário deste campo — disse Caramon, fazendo deslizar a mão para o lado e desembainhando sub-repticiamente a espada.
— Vem fazer o quê aqui? Ceifar plantas mortas? — perguntou Raistlin, em tom cáustico. — Não. Por algum motivo a Floresta de Wayreth se mantém afastada de nós, quando sabe que preciso de atravessá-la com urgência. Desconfio que é por causa daquilo.
— Quem me dera que tivesse a tua magia — resmungou Caramon, caminhando pesadamente pelo campo ressequido. — Não sou o espadachim que costumava ser.
— Não interessa. Contra aqueles, a tua espada de pouco valerá. Além disso, não estou indefeso. Acautelei-me para a eventualidade de termos confusão. — Enquanto falava, Raistlin remexeu uma das bolsas. — Ah, eu tinha razão! Olha, nas sombras daquelas árvores!
Caramon virou-se e lançou um olhar de esguelha.
— Os meus olhos também já não são o que eram. Que foi?
— Cavaleiros do Abrolho, os feiticeiros de vestes cinzentas de Takhisis, são seis.
— Raios! — praguejou Caramon baixinho. — Que faremos? — disse, olhando para o irmão.
Raistlin puxara o capuz negro bem para frente, ocultando o rosto.
— Em vez dos músculos, usaremos os miolos, e quero dizer com isto que vai manter a boca fechada. Deixe que eu fale.
— Claro, Raist — respondeu Caramon, com um sorriso. — Como nos velhos tempos.
— Nem calcula, meu irmão — disse Raistlin com brandura. — Nem calcula.
Os dois caminharam juntos, Raistlin apoiando-se no braço de Caramon — mas não no que empunhava a espada e penetraram no bosque.
Os Cavaleiros Cinzentos aguardavam-nos. Levantando-se da erva onde tinham se sentado, formaram um semicírculo que, quase de imediato, se fechou em torno dos irmãos.
Raistlin ergueu a cabeça, fingindo estupefação.
— Ora, ora, saudações, Irmãos. De onde vocês apareceram?
Largando o braço de Caramon, Raistlin enfiou as mãos nas mangas das vestes negras. Os magos ficaram tensos. Mas, dado Raistlin mantê-las ali e dirigir-se aos cavaleiros chamando-lhes “irmãos”, desanuviaram um pouco.
— Saudações, Veste negra — respondeu um dos cavaleiros, uma mulher.
— Sou a Dama da Noite Lillith. O que o traz por estas bandas?
— O mesmo que você, suponho — replicou Raistlin em tom prazenteiro. — Procuro entrar na Floresta de Wayreth.
Os Cavaleiros Cinzentos trocaram olhares carregados. A Dama da Noite, obviamente a chefe deles, observou:
— Ouvimos dizer que Dalamar o Sinistro convocou um Conclave de Feiticeiros. Esperávamos assistir.
— E assistirão — replicou Raistlin. — Ouvirão coisas que os deixarão atônitos, receberão advertências quanto ao tempo... se prestarem atenção. Contudo, desconfio não ser este o verdadeiro motivo que os leva a pretender assistir ao Conclave. Quantos dos seus irmãos se encontram escondidos por estas bandas? — Olhou em redor, aparentando interesse.
— Vinte? Uma centena? Acham que são suficientes para conquistar a torre?
— Interpreta-nos mal — respondeu, imperturbável, a Dama da Noite.
— Irmão, não constituímos ameaça para ti... para os nossos irmãos.
Lillith fez uma vênia e Raistlin retribuiu-a. Endireitando-se, a Dama da Noite prosseguiu, enquanto olhava intensamente para Raistlin, tentando perscrutar o rosto que se escondia sob o capuz.