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Raistlin emergiu do interior da árvore e começou a sacudir os detritos e os seixos, retirando do cabelo branco pedaços de cortiça.

Caramon olhou orgulhoso para o irmão.

— Foi um espetáculo! A tinta branca e tudo isso! Quando foi que se preparou?

— Quando seguíamos montados no dragão — respondeu Raistlin em tom complacente. — Anda, ajude-me a descer até à enseada. Preciso retirar esta porcaria. Começa a dar coceira.

Os dois desceram até o leito da enseada. Caramon voltou a pegar no odre. Raistlin lavou a cara e as mãos. O branco gelado da carne morta borbulhou e desapareceu, arrastado pela correnteza.

— Foi de um realismo absoluto. Pensei que tinha recuperado seus poderes — disse Caramon.

— Diga antes que pensou que eu menti a respeito de ter perdido os meus poderes — replicou Raistlin em tom conciso.

— Não, Raist! — protestou Caramon, com demasiada veemência. — Não pensei. Verdade. Só que... bom... podia ter-me dado alguma pista...

Sorrindo, Raistlin abanou a cabeça.

— Não tem jeito para a hipocrisia, meu querido irmão. Bastava olhar para a tua cara honesta para a Dama da Noite ficar sabendo de tudo. Mesmo assim, acho que ficou desconfiada.

— Então, por que ela não anda por aqui investigando?

— Porque lhe dei uma desculpa perfeita para partir com a dignidade ainda intacta. Meu irmão, veja se entende, aqueles Vestes Cinzentas encontravam-se aqui com o objetivo de atacar a Torre de Wayreth. Pensaram que podiam penetrar na floresta sem serem descobertos.

Raistlin levantou a cabeça e olhou intensamente em redor.

— Sim, consigo sentir a magia. Utilizaram vários encantamentos, na tentativa de descobrir a entrada. Não tiveram sorte. Duvido que a Dama da Noite pretendesse voltar à presença de Ariakan e comunicar-lhe o seu fracasso. Agora, são portadores de notícias de índole diferente.

— Sabia disso tudo! — exclamou Caramon, cheio de admiração. — Antes mesmo de virmos?

— É claro que não — replicou Raistlin, tossicando. — Vamos, não fique aí plantado. Ajude-me a subir a colina. Sabia que podíamos enfrentar confusão na estrada, de modo que me preparei para a eventualidade, nada mais. Depois de ouvir de Palin algumas das lendas mais interessantes que correm a meu respeito, achei que seria fácil tirar partido da situação. Um pouco de tinta branca na cara, uns pós de carvão e um pedaço de pasta de pistácio da Tika sob os olhos, mais um punhado de pólvora e... catrapum! O Feiticeiro Morto regressa do Abismo.

— Era capaz de ter adivinhado o resto, mas a cena do desaparecimento é que me confundiu — disse Caramon, ajudando o irmão a subir o pequeno outeiro.

— Ah, tratou-se de um toque inesperado. — Raistlin retrocedeu até o salgueiro e apontou para o interior da árvore. — Não tencionava fazer aquilo. Mas, quando me encostei ao tronco, senti uma grande fenda. Olhando de relance lá para dentro, descobri que uma porção da árvore era oca. Lá dentro há provas indicando que as crianças locais a utilizaram para brincar de casinha. Para mim foi simples enfiar-me ali, coberto pela explosão e fumaça. Infelizmente, sair foi mais difícil.

— Bom, tudo o que posso dizer é que você... Em nome do... Em nome do Abismo! De onde veio aquele?

Caramon inclinara-se para examinar o interior do salgueiro. Ao virar-se, quase chocara com um gigantesco carvalho que, momentos antes, não se encontrava lá. Olhou para a esquerda e avistou outro carvalho. À direita, encontrava-se mais um. O campo estéril, a aveia ressequida e até a enseada, tinham desaparecido. Encontrava-se numa floresta imensa e escura.

— Meu irmão, acalme-se. Foi há tantos anos assim que já se esqueceu? — Raistlin voltou a enfiar as mãos nas mangas da veste. — A Floresta de Wayreth nos encontrou.

As árvores afastaram-se e surgiu uma trilha, que os conduziria aos recessos.

Caramon olhou para a floresta com ar soturno. Outrora, percorrera em diversas ocasiões aquele caminho, e as reminiscências que o mesmo evocava não eram felizes.

— Raist, não compreendo uma coisa. Os Cavaleiros Cinzentos escarneceram da tua advertência e Lorde Ariakan também o fará. Não lutarão ao nosso lado...

— Hão de lutar, meu irmão — respondeu Raistlin, com um suspiro. — Deixaram de haver “lados”, entende? Ou lutamos juntos ou morreremos.

Ambos permaneceram um instante em silêncio. O roçar das folhas das árvores tinha ecos de perturbação e inquietação e os pássaros chilreavam baixinho.

— Bom — disse Caramon, segurando com força na espada e olhando para o bosque encantado com ar sinistro. — Acho que é melhor despacharmos este assunto.

Raistlin pousou a mão no braço do irmão.

— Caramon, vou entrar sozinho. Você volta para casa.

— E te deixo? — Caramon mostrava-se inflexível. — Não, não permitirei...

— Meu irmão — disse Raistlin em tom gentil —, está caindo de novo em velhos hábitos. Agradeço por me acompanhar até aqui. Já não preciso de você. O seu lugar... — acrescentou, apertando mais o braço do irmão — é junto da família e do povo de Consolação. Tem que voltar, prepará-los para o que está para acontecer.

— Não vão acreditar em mim — respondeu Caramon com rudeza. — Nem eu mesmo tenho certeza se acredito.

— Meu irmão, há de ocorrer-te alguma coisa — respondeu Raistlin. Tossicando, levou um pano branco aos lábios. — Tenho fé em ti.

— Ah tem? — retrucou Caramon, corando de prazer. — Sabe, talvez eu invente que andava formando um movimento secreto de resistência. Depois eu...

— Sim, sim — interrompeu-o Raistlin. — Vê é se não se atrapalha. Agora, tenho que ir. Já perdi tempo demais. Volte para a estrada. O dragão está de vigia à sua espera e o transportará de volta em segurança.

Caramon pareceu extremamente duvidoso, mas sabia que era melhor não argumentar.

— Você também vem, Raistlin? — perguntou, ansioso. Raistlin fez uma pausa e reconsiderou.

— Não posso prometer — respondeu, abanando a cabeça.

Caramon abriu a boca para insistir, mas vendo o olhar faiscante do irmão calou-se. Aquiesceu com a cabeça, pigarreou, colocou o alforje no ombro e perguntou:

— Vai cuidar do Palin, não vai? — perguntou bruscamente. Raistlin esboçou um sorriso soturno e retesou os lábios.

— Sim, meu irmão. Isso eu prometo!

4

Pai e filha.

Em Palanthas, o Grêmio dos Ladrões atravessava épocas difíceis.

No início, alguns dos seus membros regozijaram-se com a vitória da Rainha das Trevas. Tinham trabalhado com afinco para ver chegado o dia em que a noite finalmente governaria a Terra. Os ladrões prepararam-se para receber uma gorda recompensa.

Um rude golpe os esperava.

Foi em marcha triunfante que os Cavaleiros de Takhisis entraram em Palanthas. Pelas ruas da cidade, ecoaram os cascos dos seus corcéis, entrecortados pelo tinir do ferro. Acompanhavam-nos as flâmulas da caveira e do lírio, cujas bandeiras, no ar quente e parado, pendiam flácidas. Ordenaram aos cidadãos que prestassem vassalagem ao Senhor de Ariakan. Encheram as mãos das criancinhas de flores e mandaram-nas arremessá-las aos pés de Sua Senhoria. As crianças sentiram-se aterrorizadas com as carrancas dos elmos em forma de caveira dos cavaleiros e com os brutos de pele azulada, que faziam caretas ferozes e entoavam cânticos de guerra numa voz estridente que gelava o sangue. Largando as flores, as crianças precipitaram-se para o refúgio das saias das mães aos gritos. Os pais agarraram-nas e levaram-nas para longe dali, incorrendo na ira da cavalaria das trevas.

De modo que a chegada do Senhor de Ariakan foi acolhida com lágrimas, flores murchas e medo. Não que se importasse. Já esperava isso. Quando, do meio da populaça, lhe chegava aqui e ali algum grito de júbilo, virava-se para fitar essa pessoa e indicava-a ao ajudante. Uma delas foi Geoffrey Linchado, que, para festejar o dia, se embebedara que nem um gambá e berrava agora a plenos pulmões.