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Depois de ficar sóbrio, Geoffrey Linchado fora, no dia seguinte, prestar homenagem a Sua Senhoria. Não lhe concederam passagem. Destemido, Geoffrey voltara todos os dias até, semanas mais tarde, conseguir finalmente entrar.

Ariakan requisitara uma casa no centro da cidade, próxima da do Senhor de Palanthas, que se encontrava sob prisão domiciliar. Ariakan poderia ter ocupado o palácio do suserano, mas o comandante dos Cavaleiros de Takhisis não tencionava permanecer por muito tempo em Palanthas. O seu lugar era na Torre do Sumo Sacerdócio, a partir da qual conduziria os seus exércitos à conquista de todo o território de Ansalon. Ficaria em Palanthas o tempo suficiente para formar um Governo provisório e sujeitar a cidade a um firme jugo.

Passava o dia sentado à sua mesa preferida, que fora colocada no meio do salão de jantar, no meio de papéis, a elaborar éditos e a redigir leis. Próximo dele, viam-se ajudantes e servos, prontos para realizarem de imediato as incumbências que ele lhes designasse. Numa pequena antecâmara, ladeada por um cordão de cavaleiros, simpatizantes e pretendentes aguardavam as graças de Sua Senhoria.

Antes de se avistar com Sua Senhoria, Geoffrey Linchado foi obrigado a aguardar naquela sala inúmeras horas. Não se melindrou e aproveitou o tempo para aliviar o Sumo Sacerdote da Ordem de Chemosh do peso da sua bolsa.

Por fim, Linch foi admitido à presença de Ariakan.

— Ora, já não era sem tempo! — foi a saudação emproada, lúbrica e impudente que o ladrão dirigiu a Ariakan.

Não lhe tendo sido disponibilizada uma cadeira para se sentar diante de Sua Senhoria, Geoffrey remediou o contratempo indo buscar uma. Pousou-a junto de um dos extremos da mesa de Ariakan, afundou-se nela, recostou-se e, erguendo as pernas magricelas, pousou confortavelmente as botas em cima da mesa.

Ariakan nada disse. Nem sequer olhou para o ladrão. Sua Senhoria estava ocupada no discurso adequado a atribuir a uma das suas leis. Nem sequer ergueu o cenho.

Ouviu-se o estrépito da lâmina de uma albarda a abater-se sobre a mesa, fendendo-a e transformando os saltos das botas de Linch em rodelas. Felizmente, a lâmina não “fatiou” as botas e os pés que se encontravam lá dentro. Geoffrey foi rápido a retirá-los da mesa. Olhando para as botas arruinadas, pôs-se a praguejar em voz alta.

Com a ponta do indicador, Ariakan esboçou um leve gesto.

O ajudante de Sua Senhoria agarrou Linch pelo pescoço atarracado, obrigou-o a levantar-se, retirou a cadeira e, em voz fria, ordenou-lhe que se dirigisse a Sua Senhoria em termos adequados à posição e categoria desta e que, em seguida, fosse cuidar de sua vida.

Geoffrey Linchado juntou as tiras e os cacos da sua dignidade e, retorcendo os dedos, lembrou, soturno, ao Senhor de Ariakan que ambos estavam do mesmo lado, que ele — Geoffrey — era, para a sua gente, tão chefe como Ariakan em relação aos cavaleiros deste, que o Grêmio dos Ladrões esperava a colaboração dos cavaleiros em determinados projetos que tinham em mente e que estes, pelo incômodo, receberiam algo em troca.

Chegado aqui, Linch estendeu ao Senhor de Ariakan uma bolsa com dinheiro, e constatou, para grande confusão sua, que aquele nem parara de escrever nem, ao longo do discurso do ladrão, se dignara a levantar uma vez sequer a cabeça.

Linch possivelmente teria escapado com uma mera palmada na cabeça, não fosse o fato do sacerdote de Chemosh irromper pela sala, arquejando e todo suado, gritando que lhe haviam roubado a bolsa de dinheiro.

Ariakan levantou a cabeça, olhou para a bolsa e reparou na caveira com chifres, que constituía o símbolo de Chemosh.

Com um sorriso afetado e sarcástico, Linch encolheu os ombros ossudos.

— Vai tudo parar na mesma causa, não é verdade, Excelência? — salientou, com uma gargalhada manhosa e um piscar de olho. — É a minha maneira de servir Sua Majestade das Trevas.

Ariakan ergueu a cabeça e, pela primeira — e última vez — olhou para Geoffrey Linchado.

— E a minha é esta — respondeu Sua Senhoria. — Enforquem-no.

A sentença foi imediatamente levada a cabo no alto da muralha da cidade. O enforcamento correu bastante bem, e alguns atribuíram-no ao fato de Linch já possuir alguma experiência.

As notícias da inesperada morte do seu chefe atingiram o Grêmio dos Ladrões com a virulência de um raio. Pelo átrio do grêmio ecoaram os gritos de ultraje e de vingança contra o ato dos cavaleiros, que os ladrões encararam como uma traição contra os da sua laia. Muitos trocaram, ali mesmo, de aliança. No espaço de dez minutos, Paladino ganhou mais adeptos do que os que uma carroça lotada de sacerdotes converteria com as orações de uma vida inteira. Esperando a todo o instante um ataque dos cavaleiros, os ladrões aprontaram-se. Enviaram mensageiros para alertar e reunir todos os membros, ordenaram que todo mundo se reunisse no átrio do grêmio. Feito isto, os respectivos chefes distribuíram armas, retiraram os cobertores das janelas, mandaram os arqueiros e os espiões posicionarem-se e ficaram aguardando a investida.

Poucos foram os que derramaram lágrimas por Geoffrey Linchado, e Usha decerto não era um deles. O ladrão arranjara-lhe alojamento por cima da taberna, conseguira-lhe trabalho de servir às mesas da taberna e depois, espojara-se na cama da jovem, dizendo-lhe exatamente o que esperava em troca da sua generosidade. Furiosa e indignada, ela lhe travara os avanços.

Linch, que não era sujeito para aceitar um “não” como resposta, possivelmente a teria forçado a ceder aos seus desejos, mas como planejara para essa tardinha uns pequenos roubos, decidira não desperdiçar o tempo na tentativa de persuadir a garota a apreciá-lo. Deixara-a, mas a partir desse dia, teimara em cumulá-la com a sua odiosa atenção.

Para seu horror, Usha não tardou em descobrir que aquelas pessoas não pescavam peixe, mas sim a propriedade alheia. Também constatou — na ponta de uma faca — que uma vez ao par dos segredos do Grêmio, ninguém sairia dali — vivo — para divulgá-los.

— A menos que use a magia para saír daqui, Filha de Raistlin!

A frase fora proferida em tom de escárnio por Geoffrey Linchado, que troçava das recusas constantes por parte de Usha. O nome provocara um coro de gargalhadas, e ela fora batizada de “Filha de Raistlin” por um sacerdote de Hiddukel, que consagrara a cerimônia metendo-lhe uma caneca de cerveja na mão. A partir de então, Usha passara a ser denominada Filha de Raistlin, e a alcunha provocava sempre uma gargalhada ou um sorriso escarninho.

Usha não possuía recursos nem ninguém para ajudá-la. Dougan Martelo Vermelho desaparecera. Alimentara a esperança dele regressar para vê-la. Queria perguntar-lhe por que motivo a entregara àquelas pessoas horrorosas. Mas nunca mais apareceu, nunca mais voltou. Tampouco estaria em suas mãos fazer o que quer que fosse pela jovem. Os ladrões nunca a perdiam de vista, por todo o lado havia sempre alguém a observá-la.

Até no quarto existiam olhos a vigiá-la. Recebia a visita freqüente de um corvo. A ave aparecia sem ser convidada, voando pela janela aberta dos seus miseráveis aposentos. Houve uma vez em que Usha deixou a janela fechada, preferindo o calor do quarto à presença do negro visitante alado. Sem se deixar intimidar, o corvo pusera-se a bicar o vidro, até Usha se ver forçada a deixá-lo entrar, caso contrário, incorreria na fúria do senhorio. Depois de entrar, o corvo saltitava pelo quarto, dando bicadas e apanhando todos os objetos que por acaso encontrasse. Felizmente, a jovem escondera os objetos mágicos oferecidos pelos Irdas no interior do colchão de palha. A ave nunca os descobrira, nem tampouco Usha se atrevera a pôr tais artefatos à vista, temendo aqueles olhos amarelos que lembravam contas.