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Receosa das conseqüências se não aceitasse, a jovem assimilara o “treino” dos ladrões. A primeira habilidade que aprendeu foi a bela arte de roubar algibeiras. Quem a ensinou foi uma velha horrorosa que pendurava pequenos sinos nas roupas e depois ordenava a Usha que tentasse retirar algum objeto — uma bolsa, um lenço de seda, um colar, um broche — sem que nenhum dos sinos tilintasse. Quando Usha falhava e um dos sinos retinia, a velha, com uma bengala, zurzia a parte do corpo da jovem, qualquer que fosse, que se encontrasse à mão.

Em seguida, ensinaram Usha a se movimentar num quarto às escuras, atulhado de objetos, sem esbarrar em nada nem fazer o mais leve ruído. Ensinaram-na a concentrar-se no seu objetivo e alcançá-lo, sem se deixar distrair pelo que se passava em volta. Aprendera a escalar muros, a trepar por cordas, a esgueirar-se por janelas. Não fora uma aluna lá muito aplicada, até à noite em que tomara consciência de que poderia utilizar todas essas habilidades para escapar, precisamente, das pessoas que a ensinavam.

Desde então, os ladrões mostraram-se agradados com os seus progressos.

Isto fora há quase um mês. Aquele dia, o dia em que Geoffrey Linchado foi enforcado, assinalou a sua decisão de tentar a fuga.

O átrio do Grêmio transbordava de provocações, fanfarronices e álcool. Os ladrões preparavam-se para lutar, seja até à última gota de sangue, seja até à última gota das bebidas alcoólicas dos duendes.

O tempo escoava-se devagarinho. O dia fora longo, quente, sufocante e enfadonho. As cabeças começavam a ressentir-se do consumo excessivo de coragem.

As trevas da noite tombaram, renovando o espírito e a energia. Na escuridão, os ladrões recuperavam sempre o alento. Os espiões nada tinham a comunicar. As ruas em volta do átrio do Grêmio estavam calmas. Dizia-se que os cavaleiros prosseguiam os seus afazeres. Não estavam se reunindo nem se preparando. Muitos consideraram-no uma mera tentativa de iludir os ladrões e levá-los a baixar as defesas. Voltaram a acocorar-se e aguardaram.

Usha encontrava-se entre eles, no átrio do Grêmio. Atribuíram-lhe uma arma, uma pequena adaga, que não tencionava utilizar. Durante uma das incursões de bêbedo de Geoffrey Linchado, a jovem descobrira a existência de uma passagem secreta, que se estendia sob a muralha e ia do Grêmio até o porto. Limpara o quarto e levara consigo os poucos pertences, algumas roupas e os artefatos mágicos dos Irdas. Estes últimos, embrulhara-os num molho, que conservava debaixo da mesa, junto dos pés. Quando os cavaleiros atacassem, planejava escapar durante a confusão.

Uma vez livre daquele lugar hediondo, iria à procura do barco e fugiria da cidade condenada. Só a penalizava abandonar Palin, mas a semanas que nada sabia a respeito dele e era com o coração apertado que chegava à conclusão de que a sua fé nos deuses esmorecera. Nunca mais o veria.

Era quase meia-noite em Palanthas e nenhum exército apinhava as ruas. Os ladrões começaram a pensar que, afinal, os cavaleiros não iriam atacar.

— Têm medo de nós! — gritou alguém.

E assim, a cerveja e as bebidas alcoólicas dos duendes, correram aos jorros.

Com efeito, os ladrões nada tinham a temer, pelo menos por ora. O Senhor de Ariakan não receava o Grêmio dos Ladrões. Tinha sólidas intenções de limpar o “ninho das varejeiras”, conforme afirmara a um dos ajudantes. A intenção figurava na sua lista — bem no fim. Os ladrões constituíam um aborrecimento, um incômodo, nada mais. Naquela altura crítica, em que se empenhava na batalha pelo controle de todo o território de Ansalon, não iria, conforme disse, “desperdiçar os efetivos militares, tão necessários, na limpeza de um monte de excrementos”.

Porém, os ladrões não sabiam disso. Estavam convencidos de haverem aterrorizado os valentões dos Cavaleiros de Takhisis. Passaram a noite dando palmadas nas costas uns dos outros e congratulando-se. A celebração foi tão estridente e buliçosa que, de início, não ouviram bater à porta.

Murf, o duende dos esgotos que, por um motivo qualquer só do conhecimento dos deuses, era capaz de beber grandes quantidades e nunca ficar bêbedo, foi o único a ouvir o leve roçar na porta. Julgou se tratarem de ratazanas que corriam atabalhoadamente pela viela. Sentindo-se um pouco esfomeado, depois de toda a cerveja derramada no chão que lambera, o duende dos esgotos precipitou-se para garantir o seu jantar. Abrindo o postigo, espreitou lá para fora. Apenas vislumbrou a escuridão, espessa e aveludada.

Julgando tratar-se da noite, o duende escancarou a porta.

Na soleira encontrava-se uma figura encapuzada, vestida de veludo negro. Mantinha-se tão quieta que Murf, ansioso por encontrar o jantar, não reparou nela e pôs-se de quatro à procura da refeição.

A pessoa encapuzada parecia habituada aos duendes dos esgotos e aos modos destes. Aguardou pacientemente até Murf, julgando ter visto uma ratazana correr para baixo das vestes negras, se esticar para levantá-las e olhar.

Uma bota pairou sobre a mão do duende, prendendo-a ao chão.

Murf fez o que, em circunstâncias idênticas, faria qualquer duende dos esgotos. Soltou um guincho que lembrava uma invenção qualquer dos gnomos, daquelas que lançam catadupas de vapor.

Ao som do guincho, que podia ser ouvido em Consolação, os ladrões pousaram as canecas e empunharam as armas. O chefe atual, um tratante conhecido por Mike o Eterno Viúvo, devido ao fato de todas as suas mulheres morrerem invariavelmente por ele, correu para a porta. Seis brutamontes seguiram-no, fazendo grande alarido.

Todos os que se encontravam no átrio ficaram em silêncio e olharam para a porta com ar de alarme e de desconfiança. Os espiões, que deviam ter avisado da aproximação do visitante mesmo antes de entrar na viela, revelavam um estranho mutismo. O Eterno Viúvo escancarou a porta. Olhando lá para fora, Usha avistou o que apenas podia ser um feiticeiro veste negra.

Entrou em pânico. Dalamar a descobrira! Fez menção de correr, mas não conseguia se mover. Sentia os pés muito frios e entorpecidos e o corpo todo a tremer. Ficou ali, muda e paralizada, olhando.

O homem ergueu a mão, que era esguia e engelhada, e agitou uma carta no ar.

Grunhindo, o Eterno Viúvo olhou de relance para os que o seguiam.

— Ele conhece o sinal — disse, e baixaram as armas, embora não as embainhassem. Diversos magos do Grêmio já esquadrinhavam os seus alforjes ou desenrolavam pergaminhos, preparando-se para defender os outros membros, caso o intruso abusasse da sua hospitalidade.

Embora o mago já tivesse retirado o pé, Murf continuava a uivar.

— Cale essa cloaca! — ordenou o Eterno Viúvo, pregando um pontapé no duende. — Saiu-me um belo vigia! — murmurou injustamente, dado Murf ter sido o único a detectar a presença do forasteiro.

— O que quer, feiticeiro? — perguntou o Eterno Viúvo. — E que a resposta seja boa, senão, vai ser o diabo!

— Procuro alguém — ouviu-se uma voz das profundezas do capuz. — Não tenciono lhes fazer mal e, quem sabe se não serei benéfico.

A voz não parecia a de Dalamar, mas Usha não podia assegurar, pois tinha uma entoação suave e ciciante. Não queria arriscar. Recuperando o aprumo e a coragem, começou lentamente a engatinhar em direção à saída dos fundos e à passagem secreta.

Contudo, mal dera uns passos, sentiu uma mão fechar-se no braço. Um dos ladrões virara-se e fitava Usha com os olhos raiados de sangue.

— Sirva-me mais cerveja!

Temendo que, ao recusar, chamasse a atenção para sua pessoa, Usha obedeceu. Mantendo a cabeça baixa, agarrou na jarra de cerveja e a estava servindo na caneca quando ouviu de novo a figura encapuzada, que disse:

— Procuro minha filha.

Usha começou a tremer e deixou tombar, com estrépito, a jarra.

— Olhem! Perdeu a filha! — exclamou o Eterno Viúvo, soltando uma risada. — Sally Dale, deixo-o entrar?

Dizendo isto, olhou para trás. Uma mulher alta, vestindo uma túnica vermelha e com inúmeras bolsas penduradas no cinto, aquiesceu com a cabeça.