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O homem entrou, o Eterno Viúvo fechou a porta com estrépito e baixou a tranca.

— Tire o capuz. Gosto de olhar um homem nos olhos — pediu o Viúvo em tom jovial.

Lentamente, o homem ergueu ambas as mãos e, devagar, retirou o capuz que lhe cobria a cabeça. Arregalando os olhos, virou-se para o Eterno Viúvo, que pareceu extremamente penalizado por ter feito tal sugestão.

O rosto do mago era magro, com a pele repuxada nos maxilares salientes. Não atingira ainda a meia-idade, mas tinha o cabelo branco. O rosto, de compleição dourada, banhado pela luz, emitia reflexos metálicos. O que o tornava mais sinistro eram os olhos, cujas pupilas tinham a forma de uma ampulheta.

O Eterno Viúvo empalideceu, fez um esgar e disse, em voz pastosa:

— Por Hiddukel, feiticeiro, tem uma cara que parece saída de um pesadelo! Se se parece contigo, coitada da tua filha!

— É bom que tenha pena de qualquer filho meu — respondeu o mago em tom suave. Os seus olhos dourados fixaram, sem interesse, os que se encontravam na sala, até se deterem em Usha.

— Como se chama? — perguntou.

Usha não foi capaz de responder, pois ficara sem fala. Nem sequer conseguia respirar. Diante dos seus olhos, as chamas cintilaram.

— Ela? — disse o Viúvo, encolhendo os ombros. — Ora, a chamamos de a filha de Raistlin... de Raist... — Um assobio sobressaltado interrompeu-o

O silvo partira de Sally Dale.

A mulher precipitou-se para o Viúvo e pegou-lhe no braço e, quase o arrancando, segredou-lhe, angustiada, um nome ao ouvido.

O viúvo tornou-se lívido e recuou. Num murmúrio ciciante, o nome foi passando de ladrão para ladrão, até o átrio do Grêmio parecer infestado de cobras.

Sally Dale beliscou o Viúvo e este, engolindo em seco e gaguejando, apontou para Usha.

— A tua filha é aquela, Mestre! Leve-a! Não a tocamos com um dedo. Juro! Mesmo que ela diga o contrário. Mestre, não sabíamos. Quem haveria de pensar? Não fiz por mal... Não se ofenda...

— Desapareça — ordenou Raistlin. — Saiam. Todos vocês!

A sua voz era suave e no entanto, chegou aos recessos mais escuros, ecoou pelas vigas, abateu-se sobre a sala como fumaça asfixiante. O Viúvo soltou uma risada fraca e atreveu-se a protestar.

— Saiam? Nós? Mestre, não é justo! Por que haveríamos de sair? O átrio é nosso...

Raistlin franziu o cenho. Os olhos dourados semicerraram-se e faiscaram. A mão deslizou para uma bolsa que trazia à cintura.

Sally Dale abanou o Eterno Viúvo, abanou-o até os ossos deste chocalharem.

— Seu estúpido! — exclamou. — É Raistlin! O Raistlin Majere! O feiticeiro que lutou contra a própria Rainha das Trevas! Se quisesse, explodiria este átrio e mandáva-o para Lunitari, conosco dentro!

O Viúvo, que ainda se mostrava hesitante, olhou para Raistlin.

Por seu turno, o arquimago mantinha-se calmo. Retirou a bolsa do cinto e, lentamente, começou a abri-la...

O átrio ficou deserto. Os ladrões correram para as portas, as janelas, para todos os escaninhos e fendas possíveis.

Em poucos minutos, Raistlin e Usha ficaram sozinhos.

Usha permanecia aterrorizada, com os olhos, dilatados pelo medo, fixos no homem que declarara ser seu pai.

Raistlin retirou da bolsa um punhado de ervas. Dirigindo-se para uma mesa próxima de Usha, escolheu a caneca mais limpa que pôde encontrar e nela jogou as ervas.

— Traga-me água quente — disse a Usha.

A jovem pestanejou, sobressaltada com a ordem, mas apressou-se a obedecer. Precipitando-se para a lareira, retirou a chaleira preta e levou-a para a mesa. Com cuidado, tentando dominar o tremor da mão, encheu a caneca com água.

Desta evolou-se um vapor perfumado com os aromas de nêveda, de hortelã e com outros cheiros menos agradáveis.

Raistlin bebericou calmamente o chá. Usha voltou a pousar a chaleira, parou um instante para reunir coragem e depois foi se sentar em frente do mago.

Este levantou a cabeça e as vestes negras roçaram. A jovem sentiu o cheiro de especiarias, de rosas e de morte.

Usha retraiu-se e baixou a cabeça, incapaz de encarar aquele rosto frio e metálico.

Estremeceu ao sentir na sua o contato de uma mão gelada. O toque era suave, mas os dedos estavam frios. Não que parecessem os de um cadáver, pois pulsavam com vida. Mas tratava-se de uma vida relutante. Há muito, muito tempo, assim ouvira contar, o fogo que ardera nessas mãos fora escaldante ao ponto de consumir o mago e todos os que dele se aproximavam. Agora, a chama esmorecia e as cinzas dispersavam-se. Nunca mais poderia ser atiçada de novo.

A mão dele aflorou-lhe a cabeça e acariciou-lhe o cabelo prateado. Depois, os dedos percorreram-lhe o rosto e tocaram-lhe o queixo, erguendo-o, obrigando-a a fitar as pupilas estranhas, em forma de ampulheta, dos olhos dourados de Raistlin.

— Não é minha filha — disse ele.

As palavras foram proferidas em tom gelado e duro. Mas tal como o peixe que vive por baixo da superfície de um lago coberto de gelo, como a vida é mantida nos recônditos das trevas geladas, sob esta declaração horrível, Usha sentiu pulsar uma grande tristeza.

— Poderia ser — respondeu, com voz dorida.

— Poderia ser filha de qualquer homem — observou Raistlin com secura. Fazendo uma pausa, olhou-a intensamente. — Não faz a mínima idéia de quem é o teu verdadeiro pai, não é? — Parecia intrigado. — Por que me escolheu?

Usha engoliu em seco. Ansiava por se esquivar do contato dele, que começava a queimar, como o gelo queima a pele.

— O kender... contou-me a lenda. Pensei... Todos pareciam respeitá-lo... Eu estava sozinha e... — Abanou a cabeça. — Desculpe. Não fiz por mal.

Raistlin deu um suspiro.

— Não era a mim que prejudicaria, mas sim a ti. Admira-me que... — O mago não acabou a frase e pôs-se a bebericar o chá.

— Não iriam me contar — disse Usha, sentindo-se impelida a dar mais pormenores. — Disseram que não interessava.

— Refere-se aos Irdas?

A jovem aquiesceu. O mago preparava-se para acrescentar algo, quando de repente foi tomado de um acesso de tosse que lhe abanou o corpo frágil e tingiu os lábios de sangue.

— Sente-se bem? Quer que vá buscar alguma coisa? — perguntou Usha, levantando-se.

A mão de Raistlin agarrou-lhe o pulso, detendo-a, enquanto tossia e arquejava para respirar. Cada espasmo fazia-o apertá-la com mais força, até o abraço se tornar doloroso, mas ela não estremeceu nem tentou libertar-se. Por fim, o acesso de tosse passou. Começando a respirar aos haustos, o mago limpou o sangue dos lábios na manga da veste negra.

— Sente-se — ordenou, em voz quase inaudível.

A jovem afundou-se na cadeira. Raistlin afrouxou o aperto, mas continuou a segurar o braço e Usha não o repeliu, antes se aproximou. Sentiu na mão do mago um calor que não existia antes, e compreendeu que fora buscar nela, na sua juventude e vitalidade.

— Como se chama? — perguntou Raistlin.

— Me chamo Usha.

— Usha... — repetiu ele com brandura. — Sabe o que significa?

— Ora, não — respondeu a jovem, pestanejando. — Nunca pensei nisso. Nunca supus que significasse algo. Não passa... de um nome.

— Um nome que vem de outro mundo, de outra época. Usha significa “a alvorada”. Pergunto-me se... — murmurou Raistlin, olhando-a. — Quem te deu o nome conheceria o significado? Saberia a sua origem? Era interessante descobrir.

— Eu poderia ser sua filha. — Usha não se mostrava interessada no nome. Queria ser filha daquele homem, queria-o agora tanto por ele como por ela. Envergava a solidão e o isolamento tal como as vestes negras, de modo orgulhoso e desafiador. No entanto, continuava com a mão engelhada pousada na dela. — Tenho olhos dourados, olhos da mesma cor dos teus.