Выбрать главу

— A sua mãe também — replicou ele.

Usha encarou-o fixamente. Sentiu um desejo ardente dentro de si, uma necessidade desesperada de preencher o vazio que toda a vida a perseguira. Os Irdas haviam tentado saciar-lhe essa fome com bolos de açúcar, fruta cristalizada e todo o tipo de doces e compotas. Não compreenderam. Não perceberam que, para crescer e desabrochar, necessitava de comida simples.

— Sabe quem são os meus pais! — exclamou, estreitando a mão dele na sua. — Sabe quem eu sou! Diga-me, por favor! Como descobriu? Foi falar com o Prot? Ele está bem? Tem saudades minhas?

Não visitei os Irdas — replicou Raistlin. — Não precisava. Outrora fui conhecido como o Mestre do Presente e do Passado. O tempo para mim não constitui obstáculo. As águas do rio transportam-me para onde eu quero ir.

Bebeu o chá e umedeceu a garganta, já com a voz mais forte, prosseguiu:

— Quando ouvi falar de você pela primeira vez, quando ouvi a sua pretensão, ignorei-a. Caramon, o meu irmão, contou-me a lenda de uma mulher misteriosa que me seduzira, desaparecera, levando dentro de si a minha semente, e me lançara um encantamento mágico do esquecimento. Não acreditei. Não há magia suficientemente poderosa a ponto de banir do meu coração a percepção de que, em alguma ocasião, fui amado. Nem sequer a morte consegue — acrescentou baixinho, quase de si para si.

Usha mantinha silêncio, esperançosa e receosa.

— De modo que quase ignorei as suas pretensões — prosseguiu Raistlin. — O Caramon assegurou-me que, antes de você, houvera outros e, presumo, que outros virão depois. Não perdi tempo com o assunto até comparecer ao Conclave dos Feiticeiros, na Torre de Wayreth. De novo o seu nome foi citado por afinidade com o meu, só que, desta vez, era a sério. Quem apresentou a pretensão foi Dalamar, o Sinistro.

A voz de Raistlin tornou-se mais dura.

— Sim, Usha, faz bem em estremecer ao ouvir o nome. Se a pretensão se revelasse verdadeira, ele pretendia usá-la para obter ascendência sobre mim. Não me restou outra opção. Tive que averiguar. Mergulhei nas águas escuras do rio do Tempo, aventurei-me até às águas paradas do lago estagnado dos Irdas. Descobri a verdade.

Tossiu de novo, mas o acesso foi breve.

— Desconheço de onde os seus pais são oriundos. Da primeira vez que os vi, tinham sido capturados e feitos escravos pelos Minotauros e enviados para servir a bordo de um navio minotauro. Os Minotauros não tratam os seus escravos com bondade. Uma noite, acreditando que a morte não lhes traria horrores piores do que aqueles que já haviam experimentado, a sua mãe e o seu pai confiaram a vida às mãos de Zeboim. Gritaram por mercê e lançaram-se ao mar enraivecido.

— Zeboim é uma deusa caprichosa. Vira-se com uma fúria selvagem contra os que a servem fielmente e recompensa os que aparentemente menos o merecem. Sentindo-se lisonjeada por aqueles dois procurarem a sua protecção, pôs-lhes no caminho os destroços de uma jangada. O seu bafo conduziu-os até terra firme e, nisso, acho que a deusa foi mal-intencionada. Guiou-os até à ilha secreta dos Irdas.

— Ao descobrirem os dois, jazendo na praia, mais mortos do que vivos, os Irdas apiedaram-se deles e deram-lhes abrigo e comida. Quando se tornou óbvio que você vinha a caminho, cuidaram da sua mãe. Contudo, embora não sendo tão brutais nem cruéis como os Minotauros, os Irdas inflingiram-lhes formas de tortura peculiares. Não era essa a intenção — acrescentou Raistlin, com um encolher de ombros. — Simplesmente não podiam compreender as necessidades dos dois humanos. Quando os seus pais se restabeleceram, desejaram partir, regressar à terra natal, e os Irdas recusaram-se. Receavam que os seus pais pudessem denunciá-los ao resto do mundo. Praticamente fizeram-nos prisioneiros. O seu pai se revoltou e desafiou-os abertamente.

Raistlin olhou-a, sereno.

— Os Irdas o mataram — disse.

— Não! — Usha vacilou, chocada. — Não pode ser verdade! Não acredito! Nunca podiam ter feito uma coisa dessas! Ora, se até o Prot era incapaz de pisar numa aranha!

— Os Irdas não o fizeram por mal. Usha, você, que os conhece, não consegue imaginar a cena? Sentiram-se repugnados e furiosos contra a ira e a violência do homem. Pretendiam apenas ensinar-lhe uma lição. Mas, a magia deles foi muito poderosa, foram longe demais. Nenhuma arte de cura, nenhuma oração conseguiram restituir-lhe a vida.

— Pouco depois, você nasceu. Uma noite, a sua mãe, com o desgosto, a agasalhou bem e deitou no berço. Depois, dirigiu-se para o mar e se afogou. Os Irdas descobriram as pegadas na areia, mas nunca chegaram a descobrir o corpo. Quem sabe se, afinal de contas, Zeboim cobrou um preço pela sua bondade anterior.

Usha mantinha-se cabisbaixa e as lágrimas corriam-lhe pelas pestanas.

— Cheios de remorsos, os Irdas a criaram — prosseguiu Raistlin. — Cumularam de mimos e nada te negaram, a não ser o conhecimento de quem era. Não podiam dizer a verdade sem te contarem tudo. E isso, nunca fariam.

— Compreendo — respondeu Usha em tom sufocado. — Os Irdas não quiseram me fazer infeliz.

— Não quiseram admitir que tinham procedido mal — respondeu Raistlin em tom contundente. — O orgulho e a arrogância dos Irdas, que em épocas remotas quase arruinou a raça deles, irá possivelmente nos destruir agora. Contudo — acrescentou, com voz soturna —, não devo ser cruel. Pagaram pela loucura...

Usha não o escutava. Imersa nos seus pensamentos, recuara até à meninice, na esperança de descobrir alguma réstia de lembrança, o vislumbre de uma canção de embalar, a derradeira expressão de ternura dos olhos da mãe. Levantando a cabeça, perguntou:

— O que disse? Desculpe, não estava prestando atenção...

— Deixe pra lá. Não era importante. — Raistlin levantou-se da mesa. — Tenho que ir. Mas primeiro Usha, cujo nome significa “a alvorada”, fica este conselho. Planejava fugir de Palanthas, numa tentativa de escapar dos teus “professores”.

Usha olhou-o, espantada.

— Como é que...

— É desnecessário — interrompeu-a ele. — A sua formação está completa. Pode deixar o Grêmio esta noite e nunca mais voltar.

— Eles não permitirão — começou Usha.

— Acho que, quando souberem quem é, te deixarão partir.

— Que quer dizer com isso? — inquiriu Usha, levantando os olhos. — Não vai... não vai lhes contar...

— Não vejo motivo para fazê-lo. Isso fica entre nós e, possivelmente Dalamar, caso ele sair da linha. Além disso, há uma razão que me leva a querer que fique. Neste momento, há alguém que se dirige a Palanthas, a sua procura e, acho eu, há de querer estar onde possa ser encontrada. É alguém — acrescentou Raistlin em tom seco, com um ligeiro sorriso a bailar nos lábios finos — que ficará radiante por saber que você e ele não são parentes.

— Palin? — perguntou Usha num sussurro. — Ele está bem? Vem aqui, por minha causa?

— Incumbi-o dessa tarefa — respondeu Raistlin. — E aceitou-a de bom grado.

Usha sentiu um calor no rosto, como se tivesse bebido vinho espumante. Deixou-se envolver pelo ardor, inebriando-se com o gosto doce e borbulhante do enamoramento jovem e feliz, no arroubo de saber que o seu amor era correspondido. Mas as bolhinhas logo se rebentaram na língua e o gosto do vinho tornou-se amargo. Ocorreu-lhe que teria que confessar a Palin que lhe contara uma mentira, uma mentira monstruosa.

Ter a percepção disso, foi como se acrescentasse ao doce vinho um travo azedo. Virou-se para Raistlin, para pedir-lhe ajuda, mas este desaparecera.

Sobressaltada, inquieta, Usha olhou ao redor. Não notara sua saída mas, contudo, a porta se abria para a noite. Foi até lá e perscrutou a viela. Mas se o arquimago se encontrava ali, liquefizera-se na noite, tornara-se uno com as trevas.