— Raistlin? — atreveu-se a chamar.
Um corvo sobrevoou-a e gritou-lhe, em tom trocista:
— Cróó!
Apesar do calor, Usha foi percorrida por um arrepio. Dirigiu-se para o átrio, juntou os seus pertences e voltou para o quarto.
5
Regresso a Palanthas.
A loja dos artigos mágicos.
As suspeitas de um cavaleiro cinzento.
Dissipadas as névoas do anel mágico, Palin deu consigo numa das ruas de uma cidade que, após uns breves instantes de desorientação, identificou como sendo Palanthas. Sob a claridade ardente do Sol, os minaretes tingidos de rubro da Torre da Feitiçaria Suprema irradiavam um clarão lúgubre. Próximo, mergulhado nas sombras, o mármore branco do Templo de Paladino refletia-se tenuamente, como que toldado por nuvens. Mas no céu azul, que brilhava e ofuscava, não se viam nuvens.
Palin relanceou o olhar pela rua onde se materializara. Tratava-se, felizmente, de uma aia lateral, possivelmente na zona mercantil da cidade. Ao longo da estrada pavimentada estendia-se uma fieira de lojas e não de residências. Vários transeuntes, sobressaltados com o seu aparecimento repentino, pararam para olhar, mas reparando nas vestes brancas do mago, limitaram-se a evitá-lo e retomaram o caminho. Palin tirou rapidamente o anel do dedo, enfiou-o numa bolsa e tentou adotar uma atitude descontraída.
Ficou espantado ao ver tanta gente na rua, a maior parte passeando calmamente e deslocando-se como se não passasse de um dia de trabalho comum. Não estava certo quanto ao que esperava enfrentar numa cidade ocupada pelos cavaleiros das trevas — possivelmente as pessoas trancadas em casa, as ruas patrulhadas por tropas, bandos de escravos a serem transportados e com grilhões nas pernas. Mas aqui, as donas de casa saíam para o mercado, com os filhos agarrados às saias, os membros dos grêmios passavam, apressados, como que — era sempre o mesmo — ocupados com algo importante. Até se viam, do lado de fora das cervejarias, os vadios, ociosos e bêbedos, e mendigos usuais postados nas esquinas.
A cidade assemelhava-se tanto à Palanthas que conhecera no passado, que Palin ponderou a hipótese do tio se haver enganado. Talvez Palanthas não tivesse caído nas mãos dos Cavaleiros de Takhisis. Tudo suscitava uma grande perplexidade. E, possivelmente, a questão que mais o deixava perplexo era: porque motivo ele se encontrava na esquina de uma rua desconhecida?
Pensara que o anel o conduziria à torre. Por que o trouxera até ali? Dalamar devia ter algum motivo.
Palin examinou com atenção as tabuletas suspensas das portas, esperando descobrir em que parte da cidade se encontrava. Quase de imediato, obteve o que julgou constituir a resposta à sua pergunta. Do lado oposto da rua, erguia-se uma loja de artigos de magia, conforme indicava o letreiro pendurado sobre a porta — três luas, a prateada, a vermelha e a negra.
Pensando que constituiria um bom ponto de partida, mesmo que não fosse essa a intenção de Dalamar, onde, quem sabe, poderia negociar alguns artigos mágicos úteis durante a sua estada, Palin atravessou a rua.
À maneira de boas-vindas, a porta que dava para a loja encontrava-se aberta de par em par, o que não constituía um fato inusitado, dado estarem ao meio da tarde de um buliçoso dia de mercado. Mas Palin ficou surpreendido por não ver nenhum guarda pesadão postado do lado de fora, pronto a afugentar os turistas, os parolos e os kenders, que se sentem atraídos pelas lojas de artigos de magia como as abelhas por água com açúcar.
Palin entrou e ficou por um instante à porta, a fim de que os seus olhos castigados pelo Sol ardente se habituassem às trevas. Chegaram-lhe aromas familiares que o fizeram sentir-se como que em casa e o descontraíram: a doce fragrância das flores secas que, ainda assim, não conseguia disfarçar o outro cheiro de podridão e morte, misturado com o de bolor e de couro velho.
A loja era ampla e, ao que parecia, próspera. Viam-se nada menos do que seis aparadores com coberturas de vidro, cheios de anéis, broches, pingentes, cristais, pulseiras e anteparos para as mãos — alguns deles lindos, outros pavorosos e ainda alguns de aspecto comum. Num outro, dispostos em prateleiras, viam-se boiões de vidro com tudo o que se pudesse imaginar, desde globos oculares de tritões, suspensos num líquido viscoso qualquer, ao que parecia ser paus de alcaçuz. (Palin nunca ouvira falar de nenhum encantamento que incluísse alcaçuz, pelo que apenas podia supor que este se destinava a magos apreciadores de doces.) Alinhados nas paredes viam-se fileiras de livros de encantamentos, ordenados pela cor das respectivas encadernações e pela ama ocasional gravada na lombada. Em pequenos escaninhos poeirentos, ocultavam-se pergaminhos enrolados e cuidadosamente atados com fitas de diversas cores. Sobre uma mesa, encontravam-se expostos estojos para pergaminhos e bolsas feitas de couro, veludo ou pano cru (para os magos mais pobres), lado a lado com uma bela coleção de pequenas facas.
Na loja havia tudo, exceto o proprietário.
Uma cortina vermelha encobria os fundos da loja. Julgando que o proprietário se encontrava ali, Palin preparava-se para chamar, quando ouviu uma voz bem atrás de si.
— Se procura a Dama Jenna, saiu por um instante. Talvez eu possa ajudar.
Postado junto de Palin, encontrava-se um homem, envergando as vestes cinzentas de mago, mas de espada embainhada.
Um Cavaleiro do Abrolho, pensou Palin. O cavaleiro devia ter se mantido atrás da porta, escondido nas sombras.
Palin reconheceu o nome do proprietário: tudo levava a crer tratar-se da Dama Jenna, poderosa feiticeira veste vermelha e amante de Dalamar.
— Não, obrigado — respondeu Palin em tom polido. — Espero pelo regresso da Dama Jenna. Preciso lhe fazer uma pergunta a respeito de um componente de encantamento.
— Talvez eu consiga responder — insistiu o Cavaleiro Cinzento.
— Duvido — replicou Palin. — Os encantamentos que eu e você lançamos nada têm de comum. Esperarei pela Dama Jenna, se não se importa. Não se prenda por minha causa. Devia estar de saída quando eu entrei.
— Não estava de saída — respondeu o Cavaleiro Cinzento. A sua voz parecia afável, até divertida. — Estou colocado aqui. A propósito, acho que não assinou o livro. Não se importa de chegar aqui...
O Cavaleiro Cinzento conduziu-o até uma pequena escrivaninha que se encontrava à esquerda da porta. Nesta, havia um grande livro com encadernação de couro e dentro, linhas desenhadas e bem espaçadas umas das outras. Olhando, Palin viu uma lista de nomes, seguida do que parecia ser um registro de compras ou movimentos comerciais. Reparou que havia poucos nomes e que o último datava de dois dias atrás.
— Assine aqui — disse o Cavaleiro Cinzento, indicando uma linha. — Depois vou ter que lhe pedir que me mostre toda a sua parafernália arcana. Não se preocupe. Devolvo depois os artigos... os que não constam da lista de contrabando e considerados lesivos do Estado. Se forem, serão confiscados. Mas, será indenizado.
Palin não podia acreditar no que ouvia.
— Lesivos... Confiscados! Não pode... não pode estar falando sério!
— Veste Branca, asseguro-lhe que falo muito sério. É o que manda a lei e sem dúvida sabia disso quando entrou aqui. Vamos. Se os guardas dos portões da frente te deram passagem, é porque não deve trazer nada muito poderoso.
— Não entrei pelos portões da frente — preparava-se para dizer, mas conteve-se a tempo. Podia lutar, mas com quê? A sua navalhinha contra a espada deste feiticeiro? E afinal de contas, que história era aquela destes feiticeiros andarem de espada na cinta? Até então, nunca fora permitido a nenhum feiticeiro de Krynn combinar a espada com a feitiçaria! Pelo visto, a Rainha das Trevas andara recrutando os préstimos dos seus lacaios!
Palin sabia, sem sombra de dúvida, que este cavaleiro-feiticeiro era muito mais poderoso do que ele. Só lhe restava ceder aos desejos do homem, fingir que colaborava e rezar a Solinari para que o Cavaleiro Cinzento não mostrasse excessiva curiosidade em relação ao Bastão de Magius.