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Após a descoberta (que até a Tika provocara “calafrios”, pelo menos fora o que esta afirmara), Caramon esvaziara o quarto das arrumações, retirara as vassouras e a caixa da lenha (embora não tocasse na barrica de cerveja, sobre a qual agora se viam inúmeros objetos de aspecto misterioso).

Procedera então a um minucioso inventário de todos os objetos arcanos. Nunca vendera nenhum como “recordação”, mas dera-os, com freqüência, a magos que atravessavam épocas difíceis, ou a jovens magos prestes a efetuar, na Torre da Feitiçaria Suprema, em Wayreth, o difícil e por vezes mortal Teste. Tinha a sensação dessas dádivas serem particularmente abençoadas, pois — apesar dos inúmeros defeitos — Raistlin sentira sempre uma empatia especial para com os fracos e desvalidos e de que, de onde se encontrava, o irmão continuaria a ajudá-los.

Era esse o quarto, ao Quarto de Raistlin, que Palin conduzia agora o pai.

Ao longo dos anos, o quarto sofrera alterações apreciáveis. A barrica de cerveja ainda se encontrava lá, mas também havia baús de madeira com entalhes peculiares, contendo os inúmeros anéis mágicos, broches, armas e alforjes de encantamento. Também havia uma prateleira, encostada à parede, que guardava todos os rolos de pergaminho, cuidadosamente atados com fitas brancas, vermelhas ou pretas. Outra parede encontrava-se forrada de livros de encantamentos. Os objetos arcanos mais sinistros encontravam-se ocultos num canto escuro. Uma pequena janela permitia a entrada da luz do Sol e — o que era mais importante para os magos — do clarão das luas vermelha e prateada, assim como do fulgor invisível da lua negra. Numa mesa sob a janela, havia uma taça com flores acabadas de colher. Para comodidade dos que ali afluíam para meditar ou estudar, havia, no interior da sala, uma cadeira confortável. Nenhum kender recebera permissão para se aproximar do quarto.

Caramon entrou, sem saber bem onde se encontrava e sem se importar, e instalou-se na única cadeira existente no quarto. Apesar da ferida e da exaustão, naquele momento Palin sentia-se mais forte do que o pai. O seu sofrimento terrível e debilitante começava a desvanecer-se. Talvez se devesse à influência balsâmica do quarto — que ele sempre amara. Ou talvez à voz que lhe ecoava dentro da cabeça — a voz que tão bem conhecia e que nunca ouvira em vida. Em algum lugar, sabe-se lá onde, Raistlin vivia.

— Se tenho de franquear o Abismo, a minha obrigação é encontrá-lo.

— Quê? — Caramon levantou bruscamente a cabeça e olhou para o filho de cenho carregado. — Que disse?

Palin não percebera que falara alto. Não pretendia abordar o assunto de forma tão básica, mas já que o fizera, e como se tornava óbvio que o pai sabia o que lhe ia no pensamento, Palin achou preferível continuar.

— Pai, quero pô-lo ao par disto. Engendrei um plano e tenciono concretizá-lo. Eu... não estou à espera que aprove. — Palin fez uma pausa, engoliu e prosseguiu, em tom calmo: — Mas deve saber o que pretendo fazer, para o caso de algo correr mal. Não vou à Torre de Wayreth....

— Bom menino! — exclamou Caramon, aliviado. — Há de nos ocorrer qualquer coisa. Se a tua segurança depender disso, eu mesmo lutarei contra Takhisis. Não permitirei que esses cavaleiros demoníacos te levem...

— Pai, por favor! — interrompeu-o bruscamente Palin. — Não vou à Torre de Wayreth porque pretendo ir à Torre da Feitiçaria Suprema, em Palanthas. Tenciono entrar no Abismo. Vou tentar encontrar o meu tio.

Caramon ficou boquiaberto, olhando com estupefação para o filho.

— Mas, filho, Raistlin não se encontra no Abismo! Paladino aceitou o sacrifício dele! O teu tio encontrou a paz no eterno repouso.

— Pai, como pode assegurar isso? A última vez que o viu, encontrava-se dentro do Abismo.

— Mas eu o vi, Palin! O vi dormindo, como costumava fazer quando éramos crianças.

— Pai, foi um sonho, você mesmo disse. Sabe o que os bardos contam: que Raistlin é mantido prisioneiro no Abismo, e o seu corpo, atormentado por Takhisis, todos os dias é dilacerado e sangra. Que todos os dias agoniza até à morte, só para ressuscitar e...

Caramon já não se sentia desconcertado. Em geral, levava tempo a refletir sobre um problema, mas para esta questão só podia haver uma resposta. Levantou-se.

— Eu sei o que os bardos contam — disse em tom soturno. — Sei que os bardos afirmam que Sturm Montante Luzente viajou até à Lua Vermelha! Tolices, só tolices! O Raistlin morreu! Morreu e descansa em paz todos estes anos! Eu o proíbo de ir! Vai ficar aqui e negociaremos com Lorde Ariakan. Tanis nos ajudará...

Palin sentiu na mão o calor do Bastão de Magras, um calor que o penetrou como se fosse vinho quente, encorpado, e que lhe deu ânimo.

Quer acreditar que Raistlin morreu, pai! Pensar de outro modo significaria que o abandonou.

O golpe fora desferido, o arco disparado, a seta lançada, causando uma ferida pavorosa.

Caramon assumiu uma palidez cadavérica, igual à dos dois filhos no túmulo. Começou a respirar depressa e aos haustos. Abriu e fechou a boca, sem proferir uma palavra. Espasmos sacudiram-lhe o corpanzil.

Palin mordeu o lábio, apressando-se a procurar apoio no bastão. Sentia-se horrorizado com o que fizera e dissera. Não fora essa a sua intenção. As palavras tinham-lhe jorrado da boca antes que pudesse detê-las. Agora que as dissera, era tão impossível a Palin apagar o sofrimento infligido como suster a vida que se esvaíra dos corpos dos irmãos.

— Não fala a sério — disse Caramon em voz baixa e trêmula.

— Não, pai, não falo. Desculpe. Sei que arriscou tudo para seguir Raistlin. Sei que o sonho te trouxe conforto e que acredita sinceramente nele. Mas, pai — acrescentou —, é possível que esteja errado...

É possível que esteja errado...

As palavras ecoaram-lhe na cabeça, adquiriram vida e contornos ao ponto de quase imaginar que as via, ardendo, diante de si, diante do pai.

Caramon engoliu em seco e abanou a cabeça, parecendo que tentava desesperadamente encontrar argumentos.

Por causa disto, vai tentar falar comigo. Não posso permitir, pensou Palin. Possivelmente iria, com facilidade, me dissuadir. Recordo como foi, em tempos, na torre. E não passava de ilusão, era só o meu Teste. Mas o medo, o terror eram genuínos.

Pai, já refleti no assunto. Steel Montante Luzente jurou me acompanhar. Me levará até à torre. Uma vez ali, falarei com Dalamar, vou convencê-lo a permitir que tente passar pelo guardião. Se não deixar — a voz de Palin endureceu —, tentarei pelos meus próprios meios. O espectro já me consentiu a passagem uma vez...

— Foi uma ilusão! — exclamou Caramon, agora zangado. — Os feiticeiros é que engendraram tudo! Sabe disso! Eles te contaram!

— Pai, será que engendraram isto? — Palin estendeu bruscamente o Bastão de Magius. — Trata-se de uma ilusão? Ou será o bastão do meu tio?

Pouco à vontade, Caramon olhou de relance para o bastão e não respondeu.

— O bastão encontrava-se trancado no laboratório do meu tio, juntamente com o Portal para o Abismo. Nem sequer o próprio Dalamar podia entrar naquela sala. No entanto, o Bastão de Magius saiu de lá não se sabe como, e veio parar em minhas mãos. Pai, vou entrar naquela sala. Vou encontrar o meu tio. Ele me ensinará tudo o que sabe. Nunca mais haverá pessoas morrendo por eu me encontrar muito fraco para salvá-las!

— Vai tentar abrir o Portal sozinho? E onde se encontra o verdadeiro sacerdote para te ajudar? Já se esqueceu? O Portal só pode ser franqueado por um mago investido de grandes poderes, que se faça acompanhar por um verdadeiro sacerdote. Foi por isso que o teu tio precisou da Dama Crysania...