Calou-se ao sentir a mão de Jenna no ombro.
— Não há saída — disse Dalamar, batendo com o rolo de pergaminho nos lábios —, a menos que seja eu a facultá-la. Usha, sente-se, por favor. Por uns tempos, irá permanecer aqui como convidada. Você e o kender. Isso mesmo, assim é melhor. Agora — prosseguiu num tom agradável, perigoso —, fale-me dos seus pais.
— Não sei nada — replicou Usha alarmada, circunspecta. — De verdade. Era órfã. Os Irdas ficaram comigo e me criaram desde bebê.
Jenna sentou-se no braço da cadeira de Dalamar.
— Devem ter contado algo mais.
— Não contaram — esquivou-se Usha. — Mas, consegui descobrir umas coisas sozinha. Já ouviram falar do Valum?
— Valin — corrigiu-a Tasslehoff. Este debatia-se entre a curiosidade e a vontade de dormir. Bocejando, beliscou-se para se manter acordado. — A palavra é Valin...
— Eu sei — replicou Usha, lançando ao kender um olhar rápido e sinistro. Sorrindo com candura, virou-se para Dalamar: — Valin, é claro. Deve ser da cidra, que me faz pronunciar mal as palavras.
Dalamar não respondeu e apertou a mão de Jenna quando esta se preparava para falar.
— Ora bem — prosseguiu Usha —, uma noite, quando eu já devia estar deitada, ouvi alguém entrar na nossa casa. Os Irdas quase nunca têm companhia, de modo que desci da cama para ver quem era. O visitante era um homem a quem os Irdas chamavam de Juiz. Ele e o Prot estavam falando a meu respeito! É claro que me pus a escutar.
— Conversaram sobre muitas coisas que eu não entendi... a respeito do Valin e da minha mãe não ser Irda, que deixara o seu povo para percorrer o mundo. Que conhecera um jovem fazedor de magia numa taberna existente numa floresta encantada. Que nessa taberna fora assediada por alguns rufiões e que o mago e o irmão mais velho deste...
— Irmão gêmeo — interveio Tasslehoff, mas as palavras perderam-se num desmesurado bocejo.
— ...e o mago olhou para a cara da minha mãe e pensou que era a mulher mais linda que já conhecera na vida. Então, ela olhou para ele e entre os dois aconteceu o Valin e...
— Explique-me o que é o Valin — pediu Dalamar calmamente. Usha franziu o cenho.
— Disse que sabia do que se tratava.
— Não — protestou Dalamar em tom ameno. — Você é que afirmou que eu sabia do que se tratava.
— Eu sei o que é! — exclamou Tas, endireitando-se na cadeira e agitando a mão no ar. — Deixem-me ser eu a dizer!
— Obrigado, Pés Ligeiros — disse Dalamar com frieza. — Mas prefiro ouvir a versão de Usha.
— Bom... O Valin é... uma coisa que acontece... entre um homem e uma mulher — começou Usha, com o rosto afogueado. — Faz... hum... com que se juntem. Acho que é isso. — Encolheu de novo os ombros. — O Prot não me contou grande coisa a respeito disso, a não ser que nunca irá acontecer comigo.
— E porque não? — inquiriu Dalamar, de mansinho.
— Porque em parte sou humana — respondeu Usha.
— Ah sim? E quem é o teu pai?
— O jovem fazedor de magia da história — replicou Usha com desenvoltura. — Chama-se Raistlin. Raistlin Majere.
— Bem que eu disse — interveio Tasslehoff.
Dalamar franziu os lábios e tamborilou a ponta do rolo neles. Em silêncio, fitou Usha por tanto tempo que esta começou a sentir-se cada vez mais nervosa e tentou esquivar-se ao jugo daqueles olhos insondáveis. Por fim, o elfo das trevas levantou-se com brusquidão e encaminhou-se para a mesa. Usha deu um suspiro de alívio, como se a libertassem da prisão de novo.
— Este vinho é muito bom — observou Dalamar, pegando na garrafa — Devia experimentar. Dama Jenna, ajuda-me a servir os nossos convidados?
— Que temos? — inquiriu Jenna em voz baixa. — De que se trata?
Dalamar encheu os copos de cristal com o vinho dourado.
— Não acredito nela — respondeu em surdina. — Está mentindo.
— Que disse? — perguntou Tasslehoff com voz estridente, intrometendo a cabeça entre os dois. — Não ouvi o que disse!
Irritada, Jenna enfiou a mão numa bolsa que trazia à cintura, retirou um punhado de areia e arremessou-o na cara do kender.
— Drowshi! — ordenou.
— Atchim! — Tas soltou um espirro e, quase de imediato, um suspiro de contentamento. Inclinando-se sobre a mesa, adormeceu depressa.
— Na história dela. Não acredito — repetiu Dalamar. — Obteve-a do kender. Foi um erro deixá-los sozinhos.
— Mas, os olhos dourados...
— Possivelmente, todos os Irdas nascem com os olhos dourados — replicou Dalamar. — Como podemos saber? Nunca vi nenhum. E você?
— Querido, não seja sarcástico! — replicou Jenna com vivacidade. — É claro que nunca vi nenhum! Ninguém em Ansalon viu! Que diz a carta?
Mal humorado, Dalamar retirou a fita preta que prendia o rolo, desdobrou-o e leu-o às pressas.
— Parece ser a Criação do Mundo — respondeu. — Não, minha querida, não é provável que aqui encontremos a resposta.
Pousou a carta na mesa onde Tasslehoff cochilava, ressonando baixinho. Havia grãos de areia presos no seu penacho grisalho. Dalamar sacudiu a areia da toalha de renda.
— Contudo, talvez haja uma forma de apurarmos a verdade — observou.
— Veja se ela possui o talento — sugeriu Jenna, adivinhando-lhe os pensamentos. Depois, pegou a carta e começou a lê-la com mais cuidado. — Enquanto faz isso, vou verificar melhor o teor da missiva. Para os Irdas a mandarem, é porque contém algo importante.
Dalamar virou-se para Usha, que agora se encontrava encolhida na cadeira, com a cabeça apoiada no braço, quase adormecida. Dalamar abanou-a pelo ombro.
— Hein? Que quer? Deixe-me em paz! — Usha remexeu-se e tentou esconder o rosto nas almofadas.
Dalamar apertou com mais força.
— Ai! — Usha soergueu-se e fitou-o. — Está me machucando!
Dalamar soltou-a lentamente.
— Se é filha de Raistlin Majere...
— Claro que sou! — replicou Usha com arrogante dignidade.
— ...então deve ter herdado dele alguns conhecimentos da arte.
— Qual arte? — retorquiu Usha, desconfiada.
— A arte arcana. A magia. Raistlin foi um dos feiticeiros mais poderosos que já existiu em Ansalon. Em geral, o talento para a magia é hereditário. Palin Majere, o sobrinho de Raistlin, herdou grande parte da perícia do tio. Portanto, a filha de Raistlin decerto possui poderes apreciáveis...
— Oh, possuo sim! — respondeu Usha, reclinando-se com indolência nas almofadas.
— Então, não vai se importar se te pedir que demonstre o teu talento perante mim e a Dama Jenna.
— Faria — respondeu Usha —, mas não me é permitido. Os Irdas avisaram-me, entende? Sou muito poderosa. — E, olhando em redor, acrescentou: — Detestaria destruir esta linda sala.
— Corro o risco — respondeu Dalamar em tom ríspido.
— Oh, não! É impossível — respondeu Usha com ar inocente, abrindo muito os olhos. — Prot me avisou para nunca...
— Lunitari seja louvada! — exclamou Jenna, arquejando ruidosamente. — Abençoadas sejam as deusas da Lua Vermelha! Se isto for verdade...
Dalamar virou-se.
— Se for verdade o quê? — inquiriu. Jenna estendeu-lhe a carta, dizendo:
— Meu amor, não prestou atenção. Vá ao final da carta.
Dalamar leu rapidamente e ergueu a cabeça.