— Os Irdas têm a Pedra Preciosa Cinzenta — acrescentou Jenna.
— Afirmam que... — Dalamar parecia absorto. — O que você sabe sobre isto, garota? — perguntou, virando-se para Usha.
Já completamente desperta, a jovem olhou-o com ar de perplexidade.
— Sei o quê? — inquiriu.
Dalamar parecia uma serpente, a ziguezaguear sob o Sol quente e brilhante. A voz doce, com a pronúncia sibilante dos elfos, tinha entoações suaves e enganadoras. Hipnotizava a presa com modos elegantes e a sua beleza delicada e, quando esta se encontrava completamente subjugada, devorava-a.
— Não se faça de tola! — Desenrolando-se, deslizou na direção dela. — O que sabe a respeito da Pedra Preciosa Cinzenta? E, minha menina, desta vez, acabaram-se as mentiras...
Usha engoliu em seco e passou a língua pelos lábios.
— Eu não estava mentindo — conseguiu dizer num fio de voz. — E não sei nada a respeito da Pedra Preciosa Cinzenta. Só a vi uma vez...
— Que aspecto tinha?
— Era uma gema... cinzenta — começou.
As sobrancelhas hirsutas de Dalamar uniram-se, em sinal de desagrado. Os olhos amendoados faiscaram.
Usha voltou a engolir em seco e prosseguiu atabalhoadamente:
— Tem muitas faces, nem consegui contá-las. E lançava uma espécie de clarão cinzento e repugnante. Não gostei de olhar para ela. Fez me sentir esquisita por dentro, como se desejasse fugir e fazer coisas malucas sem sentido nenhum. Prot disse ser assim que a pedra influenciava os humanos.
— E os Irdas tencionavam quebrar a pedra? — perguntou Dalamar com voz tensa.
— Sim — respondeu Usha, encolhendo-se, para evitar a intensidade pavorosa do olhar do elfo e voltando a refugiar-se precipitadamente nas almofadas da cadeira. — Por isso me mandaram embora. O Juiz disse que, por eu ser humana... ter uma parte humana — emendou —, ia interferir com a magia.
— Que acontece se racharem a Pedra Preciosa Cinzenta? — perguntou Jenna. — Que conseqüências teria?
— Não sei e duvido que alguém saiba, mesmo os próprios deuses. — Dalamar fixou o seu olhar devorador em Usha. — Sabe o que acontece? Antes de partir, viu alguma coisa?
— Nada — respondeu Usha. — A não ser... um clarão vermelho no céu. Parecia um incêndio. Acho... acho que foi a magia...
Dalamar não disse mais nada e ignorou Usha. Esta tomou a precaução de manter a boca fechada e enterrou-se nas almofadas, na esperança de passar despercebida. O elfo das trevas percorreu a sala várias vezes. Jenna observava-o, preocupada e ansiosa. Tasslehoff, mergulhado num sono agitado, retorcia-se e arquejava. Por fim, Dalamar tomou uma decisão.
— Vou reunir o Conclave. Hoje mesmo. Temos que partir imediatamente para Wayreth.
— Que está pensando?
— Não me agrada — respondeu Dalamar em tom agourento. — O tempo esquisito, o calor pavoroso, a seca inusitada e outras ocorrências incomuns. Pode ser a resposta.
— E o que vai fazer com a garota e o kender? Os levamos conosco?
— Não. Ela nos disse tudo o que sabia. Se chegar aos ouvidos do Conclave que a filha de Raistlin anda à solta em Ansalon, tal provocará um motim. De nada serviria. É melhor mantê-la aqui, quietinha e em segurança. O kender também. É amigo de Caramon Majere e poderia levar-lhe as notícias.
Ele e Jenna dirigiram-se para a porta.
— Esperem! — gritou Usha, levantando-se de um pulo. — Não podem me deixar aqui! Recuso-me a ficar! Vou gritar até alguém me ouvir...
Jenna virou-se e arremessou um punhado de areia para cima da jovem. Pestanejando, Usha esfregou os olhos e, cambaleando, sacudiu a cabeça.
— Recuso-me a ficar, vai ver...
— Está resistindo à magia — observou Jenna. — Interessante. Pergunto-me se o faz por si ou se lhe lançaram algum encantamento...
— Agora não há tempo para verificar.
Dalamar estalou os dedos e, balançando-se nos pés, Usha tombou no meio das almofadas, cerrando os olhos.
Havia uma porta que conduzia a uma escadaria em espiral que circundavam as paredes interiores da Torre da Feitiçaria Suprema. Para cima, os estreitos degraus de pedra iam desembocar no laboratório, que não era visitado por ninguém — nem sequer pelo Senhor da Torre. Para baixo, levavam aos quartos onde os aprendizes viviam e estudavam e, mais além, à Câmara dos Que Vêem. Fechando a porta, Dalamar trancou-a com uma chave de prata.
— Isso não deterá o kender — observou Jenna. — E é bem possível que o encantamento do sono se dissipe antes do nosso regresso.
— A fechadura é capaz de não detê-lo, mas isto sim. — Dalamar proferiu umas palavras numa linguagem fria e viperina.
Por ordem de Dalamar materializaram-se, nas trevas do interior da Torre, uma escuridão que nunca conhecera sequer sonhos de luz, dois olhos separados de qualquer corpo.
O espectro aproximou-se de Dalamar.
— Me chamou, Mestre. O que me ordena?
— Fique de vigia nesta sala. Não permita que ninguém entre ou saia. Se os dois que estão lá dentro tentarem, não lhes faças mal. Limite-se a impedir que escapem.
— Isso dificulta mais a minha tarefa — respondeu o espectro —, mas obedecerei às suas ordens, Mestre.
Dalamar começou a pronunciar as palavras de encantamento que os transportariam pelas estradas da magia até à longínqua Torre da Feitiçaria Suprema, em Wayreth. Jenna não foi logo junto dele. Ficou olhando para a porta, para o espectro e a sua vigilância incessante.
Dalamar interrompeu o encantamento.
— Apresse-se — disse, enfadado. — Não temos tempo a perder!
— E se ela falou a verdade? — perguntou Jenna em voz doce. — Pode ter poder suficiente para escapar do próprio espectro.
— Nem sequer teve poder para evitar ser apanhada roubando comida! — replicou Dalamar, irritado. — Ou é de uma perspicácia excepcional, ou uma tolinha mentirosa.
— Por que haveria de mentir? Que lucraria em fazer-se passar por feiticeira? Com certeza sabe que descobriríamos a verdade.
— Mas não descobrimos, não é? — retorquiu Dalamar. — Os Irdas são espertos, e a magia deles poderosa. Sabe-se lá o que têm em mente? Talvez a enviaram como espiã, sabendo que a única maneira de se infiltrar seria fingindo ser o que não é. Na minha opinião, ela mente e tem tantos poderes mágicos como o kender. No entanto, se não confia no meu discernimento...
— Confio, meu amor, confio — respondeu Jenna, apressando-se a juntar-se a ele. Depois, inclinou a cabeça para trás, à espera que ele a beijasse. — São outras partes de ti que não me inspiram confiança.
Amavelmente, Dalamar beijou-a, embora fosse óbvio que a sua mente estava ocupada com outros assuntos mais urgentes. — Minha querida, sou sempre fiel. À minha maneira.
— Sim — respondeu Jenna com um leve suspiro. — À sua maneira. Eu sei.
Entrelaçando as mãos, pronunciaram juntos o encantamento e penetraram nas trevas.
Trancados na sala da Torre, Usha e Tasslehoff, sob o efeito do encantamento, cochilavam. Usha era perseguida por sonhos tingidos de fogo, sonhos que a assustavam, mas não conseguia fugir deles e acordar.
Tasslehoff deixava-se embalar por sonhos de kender, querendo isto dizer que, embora continuasse adormecido, as suas mãos não paravam. Os dedos cerraram-se em volta do cabo da colher de prata e, ainda dormindo, introduziu-a no alforje.
— Deve tê-la deixado cair — murmurou.
13
O cerco a Kalaman.
A manhã despontara em Kalaman, uma efervescente cidade costeira do litoral nortenho, a leste de Palanthas. Kalaman não era tão grande nem tão requintada como Palanthas, mas — como os Kalamanitas gostavam de se vangloriar — possuía mais senso comum. Isso se devia, sem dúvida, à florescente classe média, que crescera em poder e riqueza desde os dias sombrios da Guerra da Lança. Palanthas era uma cidade de fidalgos, damas, cavaleiros e magos. Kalaman era uma cidade de homens de negócios e artesãos. Em Kalaman imperava o Grêmio, dirigido por um Governador eleito pelos respectivos membros.