Metido na pesada armadura, Ariakan transpirava. O Sol refletia-se na água e incidia no navio. Não se importava com o calor, pois sabia que o povo de Kalaman estava a suar mais do que ele. Suava de medo.
As suas esquadrilhas de dragões sobrevoavam em círculos a cidade, sem atacar, deixando que o medo que inspiravam semeasse o pânico entre os homens e os desalojasse das muralhas. Ocasionalmente, um dos dragões azuis vomitava uma faísca, indo derrubar o campanário de uma das corporações ou incendiar um armazém. Mas os dragões tinham ordens para não atacar.
As legiões de brutos deslocavam-se por sobre as muralhas, rodearam os seis pélagos da cidade e, com o corpo, investiram contra as muralhas, lembrando um oceano vivo e desenfreado. Impudicamente, ergueram os engenhos para efetuar o cerco e apenas um punhado se lançou à tarefa de tentar derrubá-las. Os brutos faziam entrechocar as espadas contra os escudos, gritavam ameaças no seu idioma bárbaro, e disparavam setas contra quem fosse bravo ou tolo o suficiente para se mostrar. Mas era tudo. Também eles evitavam atacar.
A esquadra mantinha-se ao largo, à exceção de duas fragatas, enviadas para parlamentar com as defesas do porto. Ao aproximarem-se do paredão, a primeira bateria de balistas abriu fogo contra a que seguia à frente, acertando-lhe no meio, embora acima do nível da água. A tripulação procedeu à reparação dos danos e retomou o avanço a toda a velocidade. As catapultas dispararam, falhando ambos os tiros. As fragatas arremeteram contra a desembocadura do porto e abordaram os brulotes, que tinham começado a incendiar-se. Dois dragões sobrevoaram em círculos baixos o paredão e atiraram ao mar as armas assestadas. As equipes lançaram-se às águas revoltas.
No extremo mais afastado, a única bateria da balista que restava abriu fogo contra os dragões, quando estes se aproximaram. Nenhum foi atingido, mas um dos condutores desequilibrou-se do dorso do animal e mergulhou na água.
As fragatas ataram os brulotes a longos cordames e começaram a arrastá-los para fora da desembocadura do porto, a fim de que ardessem ao largo. As valentes tripulações das balistas, receosas da cólera dos dragões, recuaram até o coração da cidade.
Pela tardinha, Ariakan chegou à conclusão de que a cidade já suara o suficiente. Convocou o arauto, transmitiu-lhe as suas ordens e enviou-o — munido de uma bandeira de tréguas — a Kalaman.
O enviado dirigiu-se para os portões da cidade, com uma bandeira branca a ondular sobre a cabeça. Era escoltado por três cavaleiros de Ariakan, sem cota de malha e sem armas, indicando que não pretendiam violência. A cidade recusou-se a franquear os portões ao enviado, mas o Governador concordou em parlamentar com ele do alto da muralha. Postou-se na linha de tiro, bem à vista, um ato de coragem que os cavaleiros das trevas que acompanhavam o arauto reconheceram dirigindo uma saudação ao meio elfo.
— O que vocês querem? — inquiriu o Governador —, escravos do mal, que sem nenhum motivo atacaram uma cidade pacífica?
— Viemos exigir que a cidade de Kalaman se renda ao poder de Ariakan, Senhor e Cavaleiro de Takhisis, que em breve governará todo o território de Ansalan.
— Outros servos de Takhisis se vangloriaram do mesmo no passado, e hoje servem-na no Abismo, que é para onde eu enviaria o vosso senhor! — O governador falou com arrojo, para dar ânimo àqueles dos seus homens que haviam tido a coragem suficiente para não sucumbir ao pavor inspirado pelos dragões. Contudo, não se sentia temerário, mas antes aniquilado e em desespero. Era impossível a Karaman ter esperança de lutar com um tão elevado número de efetivos, surgidos de terra, mar e ar. — Vamos então ouvir as condições — acrescentou em tom severo.
O arauto pôs-se a enumerá-las.
— O povo de Kalaman deve depor as armas, franquear os portões da cidade e permitir a entrada do Senhor de Ariakan e das suas tropas. O povo de Kalaman deve jurar obediência ao Senhor de Ariakan, enquanto seu suserano. Os homens em idade de combater deverão apresentar-se no largo da praça da cidade, onde lhes será dado o ensejo de ingressar nas fileiras das forças do Senhor de Ariakan. Os que se recusarem serão feitos prisioneiros.
Se aceitar as condições do Senhor de Arikan, este poupará a cidade e deixará em paz as suas mulheres e crianças. Se não aceitar as condições e teimar em impedir o acesso do Senhor de Ariakan à cidade, ele garante que arrasará as pedras dos seus edifícios, reduzirá as suas casas a escombros calcinados, que os teus homens serão levados como escravos, as mulheres entregues aos bárbaros para satisfazer seus apetites, e as crianças chacinadas em frente das mães.
O Senhor de Ariakan lhe dá até o pôr do Sol para que reconsider as suas condições.
— E como saberemos que esse Senhor de Ariakan honrará a palavra dada? — perguntou o Governador.
— O Senhor de Ariakan é um Cavaleiro de Takhisis — retorquiu o arauto em tom arrogante. — É um homem de palavra. A sua promessa é esta: rendam-se e conhecerão a paz; lutem e conhecerão a destruição.
O arauto afastou-se, seguido pelos cavaleiros que constituíam a guarda de honra. O Governador desceu das muralhas e foi consultar os dirigentes das corporações. Os dragões azuis continuavam a sobrevoar, em círculos, a cidade, reduzindo a cinzas quaisquer resquícios de coragem que possivelmente existissem ainda em Kalaman.
— Se há uma hipótese desse Ariakan honrar a palavra dada — disse o Governador aos dirigentes das corporações —, devemos aproveitá-la. De outro modo, estamos a condenar o nosso povo à morte, ou pior.
Os dirigentes dos grêmios concordaram com relutância.
A resposta chegou ao Senhor de Ariakan muito antes do pôr do Sol.
Os portões da cidade abriram-se e as suas tropas franquearam-nos. O povo aguardou, receoso, à espera de ser maltratado, ultrajado e chacinado.
Os homens aptos foram reunidos e levados para o largo da praça da cidade, onde um dos oficiais de Ariakan lhes fez um discurso a respeito dos homens e glórias que aguardavam os que ingressassem nas fileiras de Takhisis. Nenhum aceitou, pelo que foram acorrentados, algemados e levados, para que servissem uns nos navios enfeitados com carrancas de dragões negros, outros para os bosques, onde desbastaram árvores para a construção de jangadas que transportariam rapidamente as forças de Ariakan rio abaixo.
Quanto aos restantes cidadãos de Kalaman, ordenaram-lhes que regressassem às suas casas.
A esquadra de Ariakan franqueou o porto. Este entrou na cidade com pouco aparato, e de imediato se lançou ao trabalho. Os seus cavaleiros iniciaram a patrulha das ruas.
No dia seguinte, os cidadãos de Kalaman acordaram receosos, mas descobriram que os dragões haviam partido, o exército de homens pintados de azul desaparecido, e que a cidade permanecia incólume. Por ordem do Senhor de Ariakan, o mercado abriu as portas e os comerciantes receberam instruções para destrancar os postigos e começar os negócios, como se nada tivesse acontecido.
Aturdido, incrédulo, o povo começou lentamente a dirigir-se para os seus afazeres. A única diferença visível entre o dia de hoje e o de ontem, residia nos cavaleiros de armadura negra que patrulhavam as muralhas e percorriam as ruas da cidade. Aqui e ali, uma mulher chorava o marido feito prisioneiro, uma criança gritava pelo pai ausente, um pai carpia o filho perdido, mas pouco mais.
Kalaman caíra quase sem um queixume.
Na mansão do governador, sentado à escrivaninha deste, Ariakan desenrolou um mapa e os seus olhos fixaram-se em Palanthas.
14
A roda vai girando.
A roda pára.
A roda volta a girar.
Nessa tarde, antes do Sol se pôr, Caramon e Tika procederam às exéquias fúnebres dos filhos.
Em Consolação, mandava a tradição que se plantasse uma jovem árvore do vale em cada túmulo recém-aberto. Acreditava-se que, desta forma, a alma do defunto transitava para a árvore, e que, portanto, nunca chegava verdadeiramente a morrer. Era um dos motivos que levava o povo de Consolação a considerar as árvores do vale sagradas, um dos motivos porque nenhuma árvore viva era cortada.