— Me cheira a pratas — observou.
Após uma breve consulta com Steel, o animal aterrou nos sopés das montanhas de Vingaard.
— De qualquer forma, não tencionávamos entrar em Palanthas enquanto estivesse claro — disse Steel a Palin. — é melhor descansarmos de dia e retomamos a viagem ao escurecer.
Palin ficou irritado com o atraso. Ia confirmar que o tio se encontrava vivo e que apenas necessitava ser libertado da prisão horrorosa do Abismo. O jovem mago sentia-se repousado e em boa forma. Graças ao cataplasma de Steel, a ferida quase não o incomodava. Estava ansioso por viajar, mas contra um dragão azul ou o dono do animal, não possuía argumentos convincentes.
— Um de nós não deveria ficar de guarda? — perguntou Palin, vendo Steel desenrolar dois sacos-de-dormir.
— Precisamos descansar — replicou Steel. — O dragão vigiará o nosso repouso.
Após uma breve busca, descobriram um recesso escavado num rochedo que serviria de abrigo, embora não os ocultasse se por acaso alguém passasse. Palin estendeu o cobertor, comeu um pouco da grande quantidade de alimentos que Tika ainda arranjara tempo para lhes preparar. Steel comeu também, deitou-se e, habituado à disciplina de soldado que sabe que deve repousar quando e onde puder, logo mergulhou no sono. Palin estendeu-se no chão frio e preparou-se para passar o dia antevendo, insone, o cair da noite.
Acordou, por volta do pôr do Sol.
Steel já se encontrava de pé, selando o dragão. Fulgor se mostrava bem repousado e, pelo seu aspecto, bem saciado. Espalhadas ao redor, viam-se as carcaças de vários veados.
Palin levantou-se com movimentos lentos, sentindo-se rígido e dolorido por ter dormido no chão. Normalmente, o seu sono era perturbado por sonhos estranhos, que mal conseguia recordar. Desta vez não foi assim. Não se lembrava de ter dormido um sono tão reparador nem tão profundo na vida.
— Está se transformando num velho soldado de campanha — grunhiu Steel enquanto se esforçava para colocar a pesada sela no dorso do dragão. — Até no ronco.
Palin murmurou uma desculpa qualquer. Sabia por que motivo dormira tão bem e sentiu-se um pouco envergonhado. Parecia constituir uma traição à família, à sua casa, à educação que recebera. Pela primeira vez na vida, desde que sentira a ânsia, desde que tivera idade suficiente para atirar pretenso pó mágico na cara dos companheiros de brincadeiras, sentia-se em paz consigo mesmo.
— Não peça desculpas, Palin. Você fez bem. Precisamos da nossa força para o confronto que nos espera esta noite.
A Clareira de Shoikan. Um local terrível, mortal. Caramon tentara uma vez atravessá-la e quase perdera a vida. E agora Palin mal podia conter a impaciência. A clareira não lhe inspirava terror. Nem tampouco quem a manobrava. Raistlin prometera tratar do assunto com Dalamar. Os pensamentos de Palin achavam-se concentrados no que aconteceria depois de ultrapassada a clareira.
O Portal. O seu tio.
O dragão voava a grande altura, atravessando o céu que ia escurecendo, em círculos indolentes, utilizando as bolsas de ar e calor para impulsioná-los para cima.
Depois de poucas horas, começaram a se vislumbrar as luzes da cidade de Palanthas. Sobrevoaram-na, contornando a Cidade Nova pela direita. As muralhas da Cidade Velha rodeavam-na como o arco de uma roda de carroça. Os portões eram iluminados pelo fulgor vivo das tochas. A famosa biblioteca encontrava-se às escuras, excetuando a luz que tremeluzia numa das janelas. Possivelmente seria Astinus, que alguns afirmavam ser o próprio deus Gileano, acordado até altas horas registrando o fluxo da História que por ele passava.
Quem sabe se, nesse exato momento, estaria escrevendo sobre eles. Quem sabe se, em breve, estaria possivelmente a registrar a morte deles. O pensamento ocorreu-lhe espontaneamente quando Palin baixou os olhos e vislumbrou os trilhos gelados e de breu que constituíam a Clareira de Shoikan. Desviou rapidamente o rosto e concentrou-se na Torre da Feitiçaria Suprema. Viam-se luzes a tremeluzir no interior das janelas, a maior parte no andar inferior, onde se encontravam os magos aprendizes, acordados a decorar os encantamentos. Palin, que conhecia a localização do quarto de Dalamar, procurou ver se havia luz lá.
Encontrava-se às escuras.
Do lado oposto da torre, erguia-se o Templo de Paladino, com as paredes brancas envoltas num pálido fulgor, como se tivessem captado os raios da lua Solinari e os utilizassem para iluminar a noite. Lembrando-se da sua incumbência e da natureza do companheiro, Palin foi incapaz de olhar por muito tempo para o templo.
O dragão os conduziu ao palácio do Senhor de Palanthas. Encontrava-se todo iluminado. Sua Senhoria devia estar dando uma festa.
Como as pessoas podem divertir-se numa hora destas?, interrogou-se Palin, invadido pela raiva. Os irmãos dele encontravam-se mortos. Outros homens bons haviam sacrificado a vida. Para quê? Para isto... para que o Senhor de Palanthas e os seus abastados amigos pudessem beber, até ficarem inconscientes, vinho elfo de contrabando?
Palin interrogou-se sobre o que aconteceria se saltasse do dragão, aparecesse junto dos convivas com as suas roupas manchadas de sangue e gritasse:
— Abram os olhos! Olhem para mim! Vejam o que os espera!
Provavelmente nada, provavelmente seria expulso pelo despenseiro.
O dragão azul guinou para a esquerda, contornou o palácio, deixando para trás as luzes resplandecentes. Sobrevoou a muralha da Cidade Velha, passou pela Cidade Nova e pousou sobre a baía. Contrastando com a cidade, as águas mostravam-se incrivelmente escuras. Apenas uns minúsculos pontos de luz assinalavam as guaritas que efetuavam a vigia noturna.
Estes também deviam estar dormindo, pois ninguém deu pelo dragão descendo dos céus e aterrando no litoral.
16
A Torre do Sumo Sacerdócio.
Um mensageiro indesejado.
Mandada construir na Idade do Poder por Vinas Solamnus, a Torre do Sumo Sacerdócio albergava a única passagem que atravessava as montanhas de Vingaard — a principal rota terrestre entre o resto de Ansalon e a grande cidade de Palanthas. A torre era imensa, maciça, uma poderosa fortaleza. Contudo, devido à sua inusitada concepção, havia quem tivesse ouvido Flint Forjardente, o duende e Herói da Lança, comentar que o construtor ou estava embriagado ou louco.
A torre fora construída por humanos, de modo que, para parafrasear os gnomos, as críticas do bom duende deviam ser aceitas como um grão de pimenta. E em abono da verdade, quando Flint fez tal declaração não estava ao par da verdadeira natureza do inusitado sistema defensivo da torre, que o duende veria ser posto em ação depois disso.
Pouco após o comentário de Flint, os dragões do exército de Sua Excelência Kitiara atacaram a torre. O cavaleiro solâmnico Sturm Montante Luzente veio a perecer nessa investida, mas graças ao sacrifício de Sturm, os outros cavaleiros conseguiram se reagrupar e, secundados por um kender, uma donzela elfa e um globo de dragão, salvar a torre.
A Torre do Sumo Sacerdócio possuía um aspecto formidável. Elevando-se no ar a uma altura de cerca de 300 metros, rodeada por todos os lados por montanhas pontilhadas de neve, com exceção da ala mais ao sul, a torre gozava da reputação de que, enquanto fosse defendida por homens de fé, nunca tombaria pelas mãos de nenhum inimigo. Na base, uma cortina de pedra exterior formava um octógono. Cada ponto da muralha octogonal era sobrepujado por um torreão. O topo da cortina, entre os torreões, encontrava-se pontilhado de seteiras. Uma parede octogonal interior formava a base de oito torres menores, construídas em torno da torre central maior.
O que tanto perturbara Flint Forjardente fora o fato de nada menos do que seis gigantescos portões de ferro atravessarem as muralhas exteriores, três dos quais abriam para a planície solâmnica, indo todos desembocar no interior da torre. Qualquer duende que fizesse jus ao seu peso em pedra, diria que uma fortificação, quando sólida e boa, possui apenas uma entrada, que podia ser fechada, prontamente ocupada e defendida contra a investida inimiga.