Os homens transportaram o mensageiro numa liteira e levaram o seu cavalo exausto para os estábulos.
— Seja como for, fiquei sabendo tudo o que precisava — observou Sir Thomas a Tanis. Os dois permaneceram sozinhos no átrio. O cavaleiro de guarda da entrada, retomou as suas ocupações. — Kalaman caiu. São notícias terríveis. Se chegarem a Palanthas, teremos um motim nas mãos.
Tanis pôs-se a efetuar uns cálculos rápidos.
— Como eu disse, Ariakan possui um exército imenso, que pode dividir à vontade.
— Entendo o plano dele — respondeu Sir Thomas com ar pensativo. — Ataca a costa leste com metade dos efetivos e os faz marchar para oeste, através das montanhas. Com a outra metade, ataca o nordeste e, no outro lado das Khalkists, reúne as tropas do sul com os que prosseguem o avanço. Pelo caminho, reunirá os ogros, os duendes maléficos e os draconianos que se esconderam nas montanhas. Terá que deixar tropas em Kalaman para mantê-la sob sua alçada e proteger as linhas de abastecimento, mas com os efetivos adicionais, quando chegar aqui, terá recuperado a plena força.
Sir Thomas esboçou um sorriso pesaroso.
— Eu o conheço, sabe? Nos bons e velhos tempos, eu e Ariakan costumávamos discutir planos muito parecidos com este. Enquanto se manteve prisioneiro aqui, nos tornamos amigos. Ariakan sempre foi um bom soldado — acrescentou Thomas com ar pensativo e abanando a cabeça. — O tornamos um dos melhores.
— Então, qual será a sua próxima manobra?
Virando a cabeça para o portão da frente, Sir Thomas olhou para leste.
— Está a caminho daqui — respondeu. — E não há absolutamente nada que possamos fazer para detê-lo.
17
Iludindo as patrulhas.
A peixeira esquisita.
Um olho e o olho amarelo.
— Não sei se no seu tempo era assim, mas, atualmente, há patrulhas, conhecidas por “patrulhas dos contrabandistas”, percorrendo as docas à noite — murmurou Palin ao companheiro. — E depois, temos as autoridades portuárias. O paredão da Cidade Velha foi reconstruído, e agora há guardas patrulhando. Nunca mais esquecerão o ataque lançado pelo dragão de Sua Eminência Kitiara.
Palin mal divisava Steel e o dragão. Iluminado pelos clarões suaves da Lua e das estrelas, que se refletiam nas águas, o cavaleiro procedia ao descarregamento dos mantimentos. Tinham pousado numa península que formava o litoral ocidental da baía de Branchala. Ocasionalmente, chegava até Palin o brilho da armadura, iluminada pelo luar, ou avistava a silhueta, alta e musculosa, perfilada contra o céu coalhado de estrelas.
Steel retirou a trouxa que continha as armas e que nunca era transportada na garupa do dragão, a menos que o cavaleiro voasse em combate. Afivelou a longa espada, enfiou uma outra, mais curta, no cinturão, e uma adaga na bota, deixando as setas, o arco e a lança ao cuidado do animal.
— Se a minha mãe e o seu tio tivessem unido esforços, em vez de lutarem cada um de um lado — observou Steel —, a essa hora eu poderia ser o anfitrião daquela festa na casa do suserano.
Não passou despercebida a Palin a sutil referência ao fato de Raistlin ter sido aliado das forças das trevas, tal como possivelmente ainda o era. No recôndito da sua mente, palpitava a lembrança do Teste na Torre da Feitiçaria Suprema, quando Palin conhecera o tio — pelo menos julgara tratar-se do tio. A imagem de Raistlin constituira pura ilusão, que Dalamar e os outros feiticeiros conjuraram para porem Palin à prova e verificarem se este sucumbia às mesma tentações que um dia haviam assediado o tio.
Os feiticeiros acreditavam que Caramon nunca permitiria que Palin se submetesse ao Teste, uma provação terrível pela qual todos os magos tinham que passar antes de aprofundarem a sua arte arcana. O Teste deixava seqüelas, alterações. Caramon não ia arriscar perder o adorado filho, tal como um dia perdera o adorado irmão. Os feiticeiros temeram que o amor superprotetor de Caramon levasse Palin a rebelar-se e a virar-se para o Mal, tal como acontecera ao tio. Assim, sonegaram a Caramon a decisão final, iludindo-o, e a Palin também.
No Teste, Palin acreditou que ultrapassara o Abismo, que aí fora deparar com o tio a ser torturado pela Rainha das Trevas. Libertando-o, conduzira-o de volta, através do Portal, só para constatar que Raistlin planejava deixar o Portal aberto, a fim de permitir o acesso à Rainha das Trevas. Em troca, esta concederia a Raistlin o governo do mundo.
Raistlin oferecera-se para tornar Palin seu herdeiro, mas só com a condição do sobrinho se dedicar ao Mal, fazer o voto das Vestes Negras. Palin recusara-se e preparara-se para sacrificar a sua vida, a fim de gorar os esforços do tio. Fora então que descobrira que tudo — o tio, o Portal e o Abismo — fazia parte do Teste. Nada fora real.
Ou seria?
Palin conseguia ainda ouvir as palavras de Raistlin.
Refreei a minha ambição. Nunca mais lutarei para me tornar um deus. Me contentarei com o mundo... Será esta a minha oferenda à Rainha das Trevas, como testemunho da minha lealdade — o acesso ao mundo. E o mundo constituirá a dádiva que ela me concederá. Será ela a governar e eu... eu a servir.
Foram estas as palavras do tio. Mas, tratara-se realmente do tio? Dalamar afirmara que a imagem de Raistlin não passara de ilusão, que o Raistlin que Palin encontrara fora um Raistlin criado por Dalamar.
Mas, o Bastão de Magius que Palin segurava com força, decerto não era ilusão.
— É melhor nos apressarmos — disse, em tom brusco. — É quase meia-noite.
Steel dava palmadinhas no pescoço do dragão fêmea, dirigindo-lhe palavras meigas. Palin apanhou a frase “Baluarte de Dargaard” e presumiu que seria onde Fulgor se esconderia. O senhor de Soth, o temível cavaleiro da morte, governava ainda aquela região. Outrora, Soth fora um Cavaleiro da Solamnia. Amores proibidos com uma elfa levaram-no a desonrar os seus votos de cavaleiro e a cometer assassínio. Sobre ele pairava a maldição dos deuses. Era eterno, mas vivia para sempre em amargo tormento, com ódio e inveja dos vivos. Fora leal à Rainha das Trevas e à sua causa. Num raio de cem léguas, nenhum mortal se atrevia a aproximar-se do castelo amaldiçoado. E rezava a lenda que a alma da falecida mãe de Steel fora obrigada a permanecer com o cavaleiro no Baluarte de Dargaard. O dragão azul se sentiria em segurança em tão sinistra companhia.
Inúmeras cabanas de pescadores pontilhavam a praia. Ou estavam desabitadas ou há muito os seus ocupantes se tinham deitado. Inquieto, Palin não desviava o olhar das mesmas, com receio que alguém acordasse.
— Depressa — repetiu, nervoso. — Acho que ouvi qualquer coisa.
— Não se preocupe, Majere. — Steel exibiu a adaga com o punho em forma de caveira. — Se alguém nos ver, fecho-lhe os olhos para sempre.
— Pelo amor dos deuses, nada de mortes! — protestou Palin. — Sei de cor um encantamento para dormir. Posso utilizá-lo no caso de nos descobrirem.
— Encantamento para dormir! — suspirou Steel com desprezo. — Acha que funcionará com os mortos-vivos que guardam a Clareira de Shoikan?
— Provavelmente, será tão útil como a tua adaga — respondeu Palin, zangado, desagradado com a idéia. A Clareira de Shoikan, que vira de relance do ar, deixara-o abalado.
Steel manteve-se calado. Nos olhos do cavaleiro perpassou um clarão que poderíamos considerar de júbilo. Em seguida, voltou a meter a adaga na bota.
Fulgor agitou as poderosas asas traseiras, a fim de conseguir levantar vôo do solo arenoso. Precipitou-se no ar, estendeu as asas, deixou-se embalar pela leve brisa marítima e elevou-se nos céus.