De consciência pesada, Palin subitamente se deu conta de que não solicitara a intervenção divina de Paladino.
— É tarde — disse, virando-se para Steel. — É melhor irmos.
O sorriso de Lady Katherine acentuou-se. O corvo soltou outro grito rouco e estridente, que mais parecia uma gargalhada. Empoleirado no ombro de Palin, com o bico pontiagudo mordiscou-lhe a orelha, brincando, causando-lhe uma sensação dolorosa. O mago sentiu as garras do animal enterrarem-se no ombro.
Steel exprimiu os seus agradecimentos à dama e esboçou um gesto de despedida cortês e gracioso.
Lady Katherine retribuiu o cumprimento e desejou-lhes êxito no seu empreendimento.
Acompanhados pelo corvo, que seguia com ar triunfante empoleirado no ombro do mago, Palin e Steel aventuraram-se pelo túnel estreito, com o bastão iluminando o caminho. À medida que as trevas se adensavam, o fulgor do bastão aumentava — um fenômeno que não passara despercebido de Palin antes. Verificou que o túnel se estendia sob a Cidade Velha e interrogou-se como fora possível aos cavaleiros escavá-lo sem levantar suspeitas.
Presumo que graças à magia, disse para consigo, lembrando-se dos feiticeiros dos Cavaleiros Cinzentos. Provavelmente, alguns deles encontravam-se em Palanthas, vivendo bem debaixo do nariz de Dalamar.
Não vejo a hora de lhe contar, pensou, deleitado com a idéia. Tal informação por certo lhe valeria a ajuda do feiticeiro!
O túnel não era muito comprido, apenas o equivalente à largura da muralha da cidade. Havia outra porta, que desembocava numa viela. Antes de abri-la, Steel se deteve.
— É melhor apagar essa luz — disse. Palin concordou.
— Dulak — murmurou, e o fulgor do cristal desvaneceu-se.
A escuridão era total. Palin não conseguia entrever o corvo que permanecia empoleirado no seu ombro. Ouviu a ave agitar as asas e Steel rodar a maçaneta da porta.
Esta se abriu com um chiar de gonzos. Do interior escoou um clarão prateado. Ocorria o crepúsculo de Lunitari, mas sucedia-lhe o dealbar de Solinari, e Palin sentia-se profundamente grato por isso. Com os seus encantamentos mágicos, podia invocar a lua, para que lhe reforçasse o poder. Quando atravessassem a mortal Clareira de Shoikan, iria necessitar de toda a ajuda possível. Dispunha-se a orar a Paladino, quando lhe ocorreu a pergunta de Lady Katherine.
Optando por confiar no seu instinto, Palin desistiu das preces.
— Mantenha-se junto a mim — avisou-o Steel baixinho.
Palin lembrou-se que se encontravam próximos ao Grêmio dos Ladrões. Introduzindo a mão no alforje, agarrou em algumas pétalas de rosa. Nos seus lábios bailavam as palavras adequadas ao encantamento do sono. Steel segurava o punho da espada.
Penetraram sorrateiramente na viela.
De súbito — nada ouviram, nada viram — uma figura alta e escura postou-se diante deles, vedando-lhes a passagem.
Antes que Steel pudesse desembainhar a espada ou Palin pronunciar as palavras do encantamento, Olho Amarelo emitiu um grasnido estridente e roufenho.
A figura desvaneceu-se, como se nunca tivesse existido.
— Impressionante — observou Palin, dando um suspiro de alívio.
— Insidioso como uma barata — respondeu Steel com desdém, mas sem largar a espada e perscrutando a viela.
— Que faremos com o Olho Amarelo? — Palin preparava-se para formular a pergunta quando a ave, batendo as asas, emitiu outro grasnido estridente e desferiu uma bicada violenta no pescoço do mago.
Este soltou um grito de dor e levou a mão à ferida.
— Mas, que diabo?... — Steel virou-se com tanta brusquidão que quase perdeu o equilíbrio.
— O maldito pássaro me deu uma bicada! — exclamou Palin, furioso e dolorido.
— Só isso? — retorquiu Steel, zangado. — Achei que tivesse sido atacado por uma legião de ladrões, no mínimo!
— O danado do pássaro me tirou sangue! — Palin retirou a mão e olhou para a mancha escura que se lhe alastrava pelos dedos.
O corvo soltou novo grasnido — que mais parecia uma risada — e sobrevoou a muralha, voltando para trás.
— Não vai morrer por causa da bicada de um corvo — disse Steel. Encaminhando-se para o extremo da viela, espreitou a rua.
Esta encontrava-se deserta, silenciosa. No edifício, com aspecto de armazém, que albergava o Grêmio dos Ladrões entreviam-se algumas luzes, que brilhavam desafiadoras, impudentes, mas nenhum dos seus membros percorria as aias. Ou se assim era, nem Steel nem Palin conseguiram avistá-los.
Com precaução, Steel examinou a ala de um extremo ao outro e depois o seu olhar deteve-se para lá dos beirais dos telhados.
— Lá está a torre — anunciou.
Apontou para uma estrutura que era a mais elevada de Palanthas. O fulgor de Solinari nunca conseguia penetrar na torre, que permanecia nas trevas que ela própria derramava. Contudo, ambos conseguiam vê-la com nitidez. Seria possivelmente a lua preta a irradiar o seu fulgor profano sobre os minaretes cor de sangue. Palin aquiesceu com a cabeça, incapaz de pronunciar palavra. Sentiu-se de repente avassalado pela amplitude da sua missão.
Enlouqueci, disse para consigo. Deveria dar meia volta e regressar imediatamente para casa,
Não o faria e sabia disso. Tanto que caminhara e arriscara...
Tanto que caminhara...
Confuso, Palin olhou em redor.
— Onde estamos? — perguntou. Steel esboçou um sorriso manhoso.
— Dentro das muralhas da cidade de Palanthas.
— Como... como conseguimos entrar? — inquiriu Palin, piscando os olhos.
— Não se lembra?
— Não... Eu... Não faço a mínima idéia. — Palin levou a mão à cabeça. Sentia-se tonto, desorientado.
— As bebidas alcoólicas dos duendes provocam isso — respondeu Steel sem hesitar. — Daqui a pouco se sentirá melhor.
— Bebidas alcoólicas dos duendes? Mas... Eu não bebo! E você nunca pararia numa taberna, numa hora em que corremos tanto perigo! — Palin sentiu de repente a fúria invadi-lo. — O que se passa aqui? Diga-me já!
— Não — respondeu Steel em tom calmo. — Não digo.
Palin sentiu um penetrante latejo de dor e algo quente a escorrer-lhe do pescoço. Aflorou-o com a mão e descobriu que se encontrava ferido e sangrando.
Tampouco conseguia se recordar como tinha acontecido.
Steel começou a percorrer a rua, encaminhando-se para a torre.
Desorientado, Palin seguiu-o.
Em algum lugar no céu, estalou a risada trocista e lúgubre de um corvo.
18
O templo da vida.
O bosque da morte.
Era uma daquela noites de Verão escuras e abafadas. O sono dos cidadãos de Palanthas que conseguiam dormir era agitado. Em muitas casas se via o bruxulear de candeias. Havia pessoas debruçadas nas janelas, perscrutando os céus, na esperança vã de verem cair algumas gotas de chuva, ou percorrendo os quartos, na tentativa de acalmar crianças que gemiam de rabugice ou choravam. Steel e Palin prosseguiam a caminhada, privilegiando os locais obscuros, pois deste modo passavam despercebidos e evitavam perguntas, em especial as relacionadas com o fato de um homem conseguir agüentar tamanho calor envolto numa capa.
Os dois se encontravam próximos do seu destino. Steel conseguia avistar a torre, que pairava por cima dele, e no entanto frustrava-o não ser capaz de localizar a rua que desembocava na mesma. Não podia contar com a ajuda de Palin. O mago já estivera na torre antes, mas viajara sempre pelas estradas da magia. Ao chegarem a um cruzamento, pararam para discutir que rumo tomariam. Palin deixou que fosse Steel a decidir, mas, à primeira vista, o cavaleiro se enganou, pois foram dar em um largo trecho de gramado que se estendia, qual tapete de boas-vindas, desde a aia e terminava num edifício feito de mármore branco. Pairava na atmosfera o perfume das flores dos jardins, tenuemente iluminados pelo fulgor prateado de Solinari e o clarão esbranquiçado que vinha do próprio edifício.