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Steel sentiu um baque de dor no coração, uma dor há muito esquecida e que veio agitar reminiscências do passado.

— Sei onde nos encontramos — declarou.

— O Templo de Paladino! O último lugar onde desejaríamos estar! — Palin parecia alarmado. — Caminhamos muito para leste. Devíamos ter virado ali à direita, e não à esquerda. — Olhando de relance para Steel, acrescentou: — Surpreende-me que conheça o templo.

— Quando eu era criança, Sara me trouxe aqui depois do ataque contra Palanthas. Perdemos a nossa casa devido aos incêndios que devastaram a cidade. Sara me trouxe aqui para agradecer não termos perdido a vida. Foi aqui que soube da morte da minha mãe... e quem foi o responsável!

Palin não deu resposta. Esfregou a zona do pescoço onde o corvo, o ajudante de Lady Katherine, lhe desferira uma bicada. A dor logo passaria. A magia da bicada perduraria para sempre, impedindo que Palin se lembrasse de ter conhecido um cavaleiro que era uma dama e se transformara em peixeira. Palin recomeçou o percurso oposto e Steel preparava-se para imitá-lo, mas deteve-se um momento diante do templo, chegando mesmo a dar uma ou duas passadas no espesso tapete de relva.

Nela se vislumbravam vultos escuros, e por um instante Steel julgou que ocorrera uma batalha e que se tratava de corpos. Percebeu em seguida que os mesmos se encontravam vivos e que a única batalha travada era contra o calor. As pessoas cochilavam pacificamente no gramado.

Steel conhecia bem o local, mais do que dera a entender. Quem sabe se a sua vinda não fora fortuita. Quem sabe se fora arrastado até ali, como lhe acontecera antes com freqüência.

Steel vivera uma juventude agitada. Nunca conhecera os dias fáceis e descuidados da infância louvada pelos poetas. A guerra entre a Luz e as Trevas, entre emoções e desejos antagônicos, não lhe era inédita. Desde muito cedo travara esta batalha. As Trevas, simbolizadas pela imagem da mãe na sua armadura draconiana azul, impeliram Steel, mesmo em criança, a governar, controlar — não importava a que preço, para ele ou para os outros.

E quando isso não era possível, quando as outras crianças se rebelavam contra a sua prepotência, recusando-se a obedecer-lhe, pressionavam-no a chicoteá-las, a magoá-las. A Luz, nos seus sonhos representada pela imagem de um cavaleiro desconhecido, vestido de prata, levava Steel a sentir-se depois avassalado pelo remorso. Lutava contra o torvelinho que lhe agitava a alma, sentindo-se arrastado em dois sentidos contrários, por forças poderosas que não compreendia. Receava por vezes ser dividido em dois se possivelmente não optasse por uma ou por outra. Quando isso acontecia, era ali que se refugiava. No Templo de Paladino.

Steel desconhecia porquê. Era jovem, tão imortal como os deuses, assim julgava, e por isso os deuses pouca falta lhe faziam. Nunca entrara propriamente no templo. As suas paredes de mármore eram sufocantes, causavam opressão. Não longe do lugar onde se encontrava, erguia-se uma faia preta, e sob a árvore havia um banco de mármore, antigo, relíquia de alguma família nobre dos tempos de outrora. Sendo frio, duro e desconfortável, em geral era evitado pela maior parte dos devotos.

Steel adorava-o. Nas costas do banco fora esculpido um friso de trabalhadores de contornos toscos, possivelmente executado por algum aprendiz. Retratava o funeral de um Cavaleiro da Solamnia e servia de monumento comemorativo. O friso representava o cavaleiro, deitado no túmulo de pedra, os braços cruzados no peito e o escudo encostado à tumba (uma imprecisão, mas que obedecia à veia artística). Do outro lado do corpo do cavaleiro — todos idênticos e todos parecendo muito solenes e carrancudos — viam-se 12 escudeiros.

Ocorreram a Steel os momentos em que se sentava na relva, com o queixo pousado nos braços e estes sobre o banco. Ali, por breves instantes, cessava o tumulto que lhe ia na alma, apaziguava-lhe a raiva febril que lhe queimava o cérebro, os seus punhos crispados relaxavam-se. Ficava a olhar para o friso, imbuindo-o de vida repassada de juventude e imaginação. Por vezes, tratava-se do seu próprio funeral. Claro que morrera praticando façanhas heróicas. Gostava de imaginar que morrera salvando a vida de outras crianças — os ditos amigos — e que agora, muito tarde, estes acorriam para lhe prestar as devidas homenagens. Também se imaginava presente no funeral de outro cavaleiro, e Steel via-se não como um dos que pranteavam o falecimento deste, mas como o responsável pela morte do cavaleiro. A justa fora honrosa, o cavaleiro tivera uma morte heróica e Steel comparecera ao funeral para lhe render homenagem.

Exatamente o que quase acontecera com os irmãos Majere.

O pensamento provocou-lhe um calafrio, se bem que, normalmente, Steel não se entregasse a sensações deste gênero.

Montante Luzente, está se portando como um piegas, disse severamente para consigo, envergonhado com este rasgo momentâneo de superstição. Contudo, é estranho, prosseguiu de si para si, perscrutando as trevas e tentando, sem êxito, ver refletida no frio mármore branco do banco uma réstia de luar. Já esquecera tudo sobre este banco velhinho... E, nas trevas, sorriu para si, um sorriso doce e triste.

Agora, encontrava-se familiarizado com os deuses. Dedicara a vida a um deles, a uma deusa das trevas, à deusa que governava o negrume da sua alma. Por ela seria castigado se procurasse aquele banco aprazível. Sem dúvida que também Paladino descarregaria a sua vingança contra qualquer servo de Sua Majestade das Trevas que se atrevesse a franquear o seu recinto sagrado. Pisar a relva, tal como fizera, seria considerado sacrilégio.

Palin examinava-o com atenção e preparava-se para falar, quando um som grave e profundo o silenciou.

O rosnar era selvagem, temerário, e vinha de trás.

— Não se mexa! — avisou Palin baixinho. Encontrava-se de frente para Steel e conseguia enxergar as costas do cavaleiro. — É um tigre. Está a cerca de dez passos atrás de ti. Ele...

— Não se alarmem, meus senhores. — A voz, fria e calma, ressoou na escuridão. — É Tandar, o meu guia. Não lhes fará mal. Não acham que é tarde para andarem pelas aias? Perderam-se? Meteram-se em confusão? Posso ajudá-los?

Steel se moveu, virando-se lentamente, com a mão no punho da espada. Palin apressou-se a juntar-se a ele.

Uma réstia da lua prateada foi refletir-se no animal. Tratava-se de um tigre branco, extremamente raro em Ansalon. Possuía listras pretas e cinzentas, e os seus olhos verdes, com laivos dourados, eram perigosamente inteligentes. O animal era enorme, com uma cilheira maciça e as garras do tamanho da cabeça de um homem. No pescoço, luzia-lhe uma coleira dourada, e desta pendia um medalhão com um dragão dourado — o símbolo de Paladino.

Não fora o tigre quem falara, embora o seu olhar inteligente talvez o permitisse, fora uma mulher. Emergiu das sombras para se postar ao lado do animal e pousou-lhe a mão na cabeça com gentileza. Designara o animal por “meu guia”. Quando o fulgor de Solinari a iluminou, Steel entendeu porque ela andava de noite na companhia daquele imponente exemplar.

E devia sempre caminhar nas trevas, pois era cega.

Steel reconheceu-a. Tratava-se da Venerada Filha Crysania, Suprema Sacerdotisa do Templo de Paladino, a chefe dos adoradores do deus em Ansalon.

Cerca de 20 anos tinham decorrido desde que, instigada por uma ambição tão tenebrosa como a do próprio mago, Crysania acompanhara Raistlin Majere até o Abismo. Quase perdera a vida lá. Quando se vira só e cega, naquele lugar de tormentos, é que conseguira, finalmente, vislumbrar a luz. Regressara ao mundo, cega para sua beleza, mas nunca mais cega para o seu sofrimento. Sob a sua sábia liderança, a igreja tornara-se forte e os seus sacerdotes amados.