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Lady Crysania sorriu, mas logo suspirou, dizendo:

— Sei que o faria, Senhor Cavaleiro. Penaliza-me ver tamanha nobreza de coração e alma dedicada às trevas. E, Senhor Cavaleiro, como você fará para entrar na Clareira de Shoikan? Lá, a tua Rainha não impera. O terrível monarca daquele lugar maldito é Nuitari, seu filho.

— Senhora, tenho a minha espada — respondeu Steel com simplicidade. Ela deu mais um passo na sua direção, fixando-o com os olhos sem vida e, surpreendentemente, de súbito parecia que conseguia vê-lo. A sacerdotisa estendeu a mão e pousou-a em seu peito, na armadura ornada com a caveira e o lírio da morte. O seu toque parecia lhe ressecar a alma e, ao mesmo tempo, era como a água fresca servindo de bálsamo. Pela primeira vez na vida, Steel sentiu-se vulnerável, sem saber o que fazer.

— Vejo que você também tem um guardião — disse Lady Crysania. — Dois guias! Um das Trevas, o outro, da Luz. O guia à tua esquerda, do lado do coração, é uma mulher. Veste uma armadura azul, numa das mãos segura o elmo de um Nobre Draconiano e na outra uma lança, cuja extremidade se encontra empapada de sangue. Está mais próxima do teu coração. O guia da direita é um homem, um Cavaleiro da Solamnia. Encontra-se desarmado, a bainha da sua espada está vazia. O corpo mostra um buraco ensangüentado, feito por uma lança. Este homem encontra-se mais próximo da tua alma. Ambos pretendem orientá-lo. Qual deles escolherá para teu guia?

Proferidas estas palavras, retirou a mão. Steel desequilibrou-se para trás, como se ela o tivesse agarrado até então. Procurou lembrar-se de palavras arrogantes, mas nenhuma lhe ocorreu. Limitou-se a fixá-la, com ar espantado. O que ela descrevera fora a Visão — concedida a ele pela rainha Takhisis.

O tigre pôs-se a andar sem ruído, apertando o corpo listrado de cinzento e branco contra Crysania com ar protetor. Esta deu boa-noite a Palin e a Steel.

— Eu os abençôo — disse-lhes em tom meigo.

Pousando a mão na cabeça do tigre, a sacerdotisa de Paladino foi retrocedendo até desaparecer nas sombras.

Palin ficou a olhar boquiaberto para Steel. O cavaleiro das trevas não se sentia predisposto a falar. Meio zangado, meio assustado, completamente embaraçado, Steel deu meia volta e, em passo rápido, voltou à rua que tinham percorrido e arrepiou caminho. Atrás de si ouviu os passos de Palin e o roçar das vestes do mago que, apressadamente, tentava acompanhá-lo.

Steel estugou ainda mais o passo, como que na tentativa de conjurar os demônios que lhe acossavam a alma.

— Não preciso de guias! — murmurou, furioso. — Cresci sozinho! Não preciso de nenhum de vocês... pai ou mãe!

Só abrandou quando, ao sair de uma viela, viu erguerem-se diante de si as árvores da secular e temida clareira de Shoikan.

Outrora, tinham existido em Ansalon cinco Torres da Feitiçaria Suprema. Bastiões dos magos, as torres eram vistas como uma ameaça pelos que receavam o poder dos feiticeiros. Estes, a fim de se salvaguardarem de possíveis ataques, dotaram cada torre de uma floresta que funcionava como guardião. A floresta da Torre de Daltigoth provocava uma letargia debilitante que dominava qualquer um que se atrevesse a atravessá-la e que, por via da mesma, mergulhava num sono profundo e sem sonhos. A Torre de Istar — destruída durante o Cataclismo — provocava nos que entravam lá uma amnésia total que os fazia esquecer o motivo da sua ida a tal lugar. A Torre das Ruínas provocava paixões de tal modo inflamadas nos que invadiam os seus domínios que estes perdiam por completo o interesse por todo o resto. A floresta que circundava a Torre de Wayreth, foge à alçada dos usurpadores. Por mais que se esforcem, não conseguem encontrá-la. Mas, de todas, a Clareira de Shoikan é a mais terrível. As outras eram abençoadas pelos adoradores de Solinari e Lunitari. Os Vestes Negras, seguidores de Nuitari, abençoavam a Clareira de Shoikan.

Os seus carvalhos gigantescos permaneciam imóveis, mesmo com os ventos, ciclones ou furacões mais violentos, sem que uma só folha tremesse. Os galhos maciços interligavam-se, formando um dossel tão espesso que nem a luz do Sol conseguia penetrar lá. A Clareira de Shoikan encontra-se amortalhada numa noite perpétua. As suas sombras, que não recebem o mais tênue calor, são geladas como a morte.

Foi o próprio Nuitari que lançou o encantamento do medo sobre o arvoredo. Todos os que dele se aproximem — mesmo os convidados pelo senhor da torre — experimentam um terror que paralisa e ataca o coração de todos os seres humanos vivos. Muitos nem sequer agüentam acercar-se das árvores. Os dotados de uma tão extraordinária bravura que conseguem chegar ao bosque, o fazem apenas engatinhando. Contam-se nos dedos os que se aventuraram mais longe. Um deles foi Caramon Majere. Outro foi a Venerada Filha Crysania. Um terceiro foi Kitiara. Às últimas duas concederam-lhes medalhões, destinados a neutralizar o medo, a ajudá-las a superá-lo. Quanto a Caramon, quase não escapou com a sanidade intacta.

Agora, era Steel Montante Luzente que se encontrava postado diante das sombras da Clareira de Shoikan. O encantamento apoderou-se dele, lançando o pavor sobre ele — terrível, irremediável, debilitante e irracional. Tratava-se do pavor da morte, uma certeza para os que pisavam o seu solo. O pavor dos tormentos e das torturas que antecediam o fim. E o pavor, ainda mais dilacerante, dos tormentos e das torturas que se avizinhavam depois.

Era incapaz de combater tal pavor, pois este vinha da inspiração de um deus. O pavor oprimiu-o, exauriu-o, revolveu-lhe os intestinos e o estômago. O pavor ressecou-lhe a boca, contraiu-lhe os músculos, empapou-lhe as palmas das mãos de suor. O pavor quase o obrigou a cair de joelhos.

Chegaram-lhe aos ouvidos as vozes dos mortos-vivos, tão secas e quebradiças como os ossos:

O teu sangue, o teu calor, a tua vida. Nos pertencem! Nos pertencem! Aproxime-se. Traga-nos o teu calor, sangue, a tua carne quente. Estamos frios, frios de uma friagem que transcende o que é possível suportar. Aproxime-se, aproxime-se.

As trevas do bosque se derramaram sobre Steel, uma escuridão eterna que nenhuma luz jamais iluminou, salvo, possivelmente, o fulgor invisível da Lua Negra. Dirigiu uma prece a Takhisis, embora soubesse que não seria atendida. O domínio de Sua Majestade das Trevas terminava na orla daqueles bosques. Aqui, era Nuitari, seu filho e senhor da magia negra, o rei e dono supremo. E todos sabiam que raramente dava ouvidos à progenitora.

Steel presumira sempre que o seu destino seria morrer em combate. O seu conceito de morte era jazer numa tumba de mármore, com as armas do inimigo aos pés, chorado e enaltecido pelos camaradas.

Mas isto nunca. Esfacelado pelas unhas cortantes e dilacerantes dos mortos-vivos, ver-se arrastado para debaixo do solo, estrebuchando, fincando-se com as unhas no chão, para logo soçobrar, sentindo-se agonizar na asfixia. E depois, depois de sobrevir a morte e a acolher como uma benção, a sua alma seria tomada como escrava e obrigada a servir Chemosh, o deus dos mortos-vivos.

Uma voz, uma voz inédita, veio interromper o ciclo gelado dos escravos de Chemosh. Uma mulher, vestida com uma armadura azul, emergiu das sombras das árvores gigantescas. Era linda, usava o cabelo curto, de modo a poder aconchegá-lo confortavelmente sob o elmo. Sorriu — um sorriso ambíguo — e riu. Riu dele.

— Olhe para você! Suando e a tremendo como uma criança na Noite do Olho! Será que gerei um filho covarde? Pela minha soberana, se assim foi, eu mesma me encarregarei de dá-lo como repasto a Chemosh!

A Dama Azul aproximou-se dele, caminhando com arrogância. Da anca pendia-lhe uma espada e vestia uma capa azul que esvoaçava sem cessar, embora nem uma brisa corresse no ar parado.

Steel conhecia-a. Nunca a vira em vida, mas conhecia-a. Em tempos, viera até ele uma vez... na visão.

— Mãe... — murmurou.