Lado a lado, penetraram juntos no terrível bosque. As vozes dos mortos orientavam-nos. As vozes dos mortos aliciavam-nos.
O caminho não era fácil. Na Clareira de Shoikan, pelo menos para Steel e Palin, não existia nenhuma trilha. Viram-se obrigados a abrir caminho à medida que iam forçando através da vegetação rasteira entrelaçada e eriçada de espinhos. O fedor atroz de morte e putrefação quase os asfixiava. No mundo que ficava para lá da Clareira de Shoikan, o solo encontrava-se seco, banhado pelo sol e coberto de poeira. No interior do bosque, o solo encontrava-se úmido e empapado, a lama corria, viscosa sob os pés e, à medida que iam avançando, uma água salobra inundava-lhes as pegadas. A atmosfera estava úmida e fria e o suor que lhes pingava do pescoço lembrava o que impregna um doente atacado pelos calafrios da febre.
Cada passo era uma antecâmara do inferno. Os mortos do bosque não diziam nada em voz alta. Ciciavam palavras quase inaudíveis, mas repassadas de desejos asquerosos e terríveis.
Steel caminhava na frente, empunhando a espada com ambas as mãos, pronto para investir. Mostrava-se atento, circunspecto, executando o menor movimento com extrema precaução. Palin seguia atrás, orientando-se pelo clarão do Bastão de Magius, que utilizava para iluminar o caminho. Talvez se devesse à sua imaginação exacerbada, mas pareceu-lhe que as mãos descarnadas e ávidas recuavam sempre que a luz do bastão lhe iluminava os ossos.
O percurso parecia infindável. O medo convertia os segundos em horas, as horas em anos. As trevas ciciantes, o fedor de cortar a respiração, o frio que chegava, doloroso, à medula dos ossos e entorpecia os dedos começavam a surtir efeito no guerreiro e no mago.
O solo ia ficando mais empapado, tornando a caminhada cada vez mais difícil. As pesadas botas de Steel e a armadura maciça obrigavam-no a afundar-se na lama viscosa e fétida até os tornozelos. Libertar os pés deste abraço, um após o outro, exigiam-lhe um grande esforço. Cada passo converteu-se numa batalha contra o solo empapado de lama, e logo sua respiração tornou-se arquejante. Sentia-se cada vez mais exausto. As pernas ardiam-lhe. Tentou encontrar terreno firme, vigiava cuidadosamente o solo que pisava, mas era inútil. Cada passo afundava-o um pouco mais e aumentava a dificuldade em se libertar. Esgotado, muito mais do que jamais estivera, respirando aos haustos, deteve-se e virou a cabeça para olhar para as suas pegadas.
Estavam empapadas em sangue.
Palin caminhava sem dificuldade. Percorria, o solo com passo ligeiro, sem deixar marcas à passagem. Conseguia andar, mas não respirar.
O ar sob as árvores parecia líquido, escorria-lhe para o nariz como se fosse água escura e oleosa. Engasgava-se, engolia e voltava a se engasgar. Os pulmões ardiam-lhe. Inspirava fundo, mas isso o fazia engasgar e provocava-lhe vômitos, era como se bebesse água dos pântanos. Minúsculos pontos luminosos perturbavam-lhe a visão. Começava a sufocar lentamente, a perder a consciência.
Arquejante, viu-se obrigado a parar junto de Steel.
A morte os aguardava.
Mãos descarnadas, só tendões e ossos, emergiram do lodaçal negro e cravaram-se nas canelas de Steel. Vozes esganiçadas zombavam e riam. Com uma força impiedosa, as mãos começaram a puxar, tentando arrastar o cavaleiro, para partilhar com elas a morte inquieta que os revolvia.
Com um grito, esgrimiu a espada, e a lâmina cintilou ao retalhar as mãos.
Outras mãos se enclavinharam nos pés do cavaleiro, rodeando-lhe os tornozelos. Manejando a espada, ia decepando-as dos pulsos mumificados. Quando uma das mãos tombava, inerte, era substituída por outra e depois por outra. Sentiu que perdia a batalha, que era inexoravelmente puxado para o fundo. O lodaçal já lhe chegava aos joelhos.
Palin acorreu em seu auxílio. Nos lábios palpitavam-lhe as palavras mágicas e estrebuchou para ganhar alento para pronunciá-las em voz alta. Mas não conseguia falar. O ar que lhe restava servia apenas para evitar que se sufocasse. Desesperado, pegou na extremidade do bastão e desferiu-a contra as mãos.
Os ossos esmigalharam-se, os tendões estalaram.
Exultante, prosseguiu a investida e percebeu que a respiração lhe vinha com mais facilidade. Steel também lutava com renovada esperança e já conseguia mover as pernas.
— Agarre! — gritou Palin, estendendo-lhe o bastão. Steel precipitou-se para apanhá-lo.
Dedos frios, que eram só osso, enterraram-se na nuca de Palin. Sentiu o corpo percorrido por uma dor penetrante e ardente, e os membros agitados por espasmos. O Bastão de Magius caiu no chão e a luz brilhante do cristal se apagou.
Uma escuridão espessa e palpável abateu-se sobre eles, era como se tivesse permanecido emboscada, à espera de uma oportunidade para atacar. Frenético, Palin pôs-se a golpear as mãos e o pânico foi crescendo dentro de si. De repente, soube o que fazer. Com uma nitidez que era fruto do desespero, recordou os irmãos, quando estes treinavam corpo-a-corpo. Viu Tanin aproximar-se de Sturm pelas costas e agarrá-lo pela garganta, e Sturm, fincando solidamente os pés, desferir um golpe para trás, libertando-se do abraço de Tanin e fazendo-o tombar de costas no chão.
Palin fincou os pés na lama o melhor que podia e fazendo apelo a toda a sua força, investiu para trás. Sentiu que tombava na escuridão, sem que nenhum corpo sólido lhe amortecesse a queda. Aterrou pesadamente no chão, e sentiu que o alento que lhe restava se consumia todo. Mas, as mãos afrouxaram o abraço em volta da garganta do mago.
Ficou ali, arquejando para recuperar a respiração e ciente de que tinha que se mexer, embora se sentisse muito abalado para tentar. Levantando a cabeça, julgou ter visto uma estrela brilhar entre as trevas e assombrou-se com o prodígio. Só depois percebeu que se tratava da luz da jóia que cintilava no pescoço de Steel.
— Apresse-se, Majere! — ordenou Steel, estendendo a mão para ajudar Palin a se levantar. — Foram embora... mas por pouco tempo.
Palin ignorou a mão que o outro lhe estendia. Ajoelhou-se e começou a esquadrinhar as folhas apodrecidas. Ouviu em seu redor, o sussurro das trevas.
— Que aconteceu? Se feriu? — perguntou Steel.
— O meu bastão! Onde está ele? Não o encontro! Não consigo ver! — respondeu Palin, remexendo nas folhas úmidas.
— Apresse-se, mago! — insistiu Steel.
O cavaleiro postou-se junto a Palin, protegendo-o com o corpo e de espada em riste.
— Achei-o! — exclamou Palin, com um arquejo de alívio. A sua mão fechou-se sobre a madeira macia e, de imediato, o bastão começou a irradiar luz. Transbordando de gratidão, apoiou-se no bastão e levantou-se.
E, diante deles, lá estava a Torre da Feitiçaria Suprema.
Perfilando-se contra o céu e toldando-o de escuridão, via-se um edifício alto, constando com magia e mármore negro. Nem sequer as estrelas se aproximavam da Torre de Palanthas. Sobre a mesma brilhavam três luas. As paredes de mármore cintilavam ao clarão de Solinari, pois embora fosse uma divindade adorada pelos Vestes Brancas, à semelhança dos irmãos ela também adorava toda a magia. Os raios avermelhados de Lunitari refletiam-se nas espiras cor de sangue que sobrepujavam a torre. Além das espiras e do balcão conhecido por “Passeio da Morte”, pairava Nuitari, a Lua Negra, a guardiã especial desta torre, apenas visível aos olhos dos Vestes Negras.
— Conseguimos — disse Palin, sentindo a garganta embargada. Chegara o momento há tanto tempo ansiado. Reprimiu o ímpeto de correr, pois os acontecimentos haviam-no ensinado a ser circunspecto. Aguardou que o cavaleiro o precedesse.
Apesar da fadiga, Steel avançou dando passadas rápidas. Ele também se sentia aliviado por ver a viagem chegar ao fim. Juntos, iluminados agora pelo clarão de duas luas, encaminharam-se para os portões de ferro.