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Não havia cadeados à vista. Parecia que os portões se abririam com um simples empurrão. Contudo, nenhum deles teve vontade de tocar naquele ferro, do qual escorria o visco estranho e sobrenatural da Clareira de Shoikan.

Não avistaram vivalma. Não havia candeias iluminando as janelas, mas podia tratar-se de uma ilusão. Quem sabe — era o mais provável — se inúmeros olhos não estariam a observá-los.

— Bom, Majere, de que está esperando? — perguntou Steel, indicando com a espada o portão. — Entramos nos teus domínios. Avance.

Palin não tinha argumentos a contrapor. Aproximou-se e estendeu a mão para o portão.

Este se abriu.

Palin sentiu-se mais descontraído. Olhou para Steel com uma expressão de cansado triunfo. Chegara a sua vez de liderar.

— Ande — disse. — Estão nos convidando para entrar.

— Que sorte — murmurou Steel, sem baixar a espada. Cruzou o portão e foi desembocar num estranho jardim.

Cresciam ali inúmeras ervas e flores utilizadas na fabricação de componentes para encantamentos. Cultivadas e mantidas pelos magos aprendizes, muitas dessas plantas cresciam à noite e desenvolviam-se sob o fulgor invisível de Nuitari. No ar parado pairava a fragrância da erva-moura, do lírio da morte, das orquídeas negras, das rosas negras, da arruda, da dulcamara, do meimendro negro, da papoula, da mandrágora, do absinto e do visco — um perfume adocicado, enjoativo e pesado.

— Não apanhe nem toque em nenhuma das plantas — avistou Palin quando percorriam a calçada úmida e cinzenta do jardim.

— Não as queria nem de graça — respondeu Steel, embora parasse diante do lírio e esboçasse uma ligeira vênia, sendo o lírio o símbolo da sua ordem.

Palin interrogava-se quanto à maneira de atravessar a porta — lembrava-se vagamente da existência de um sino — quando os avistou. Por toda a parte. À sua volta.

Olhos. Olhos parados. Apenas olhos.

Sem crânios ou narizes. Sem braços, troncos ou pernas.

Olhos e mãos.

Mãos pavorosas. Mãos geladas como a morte.

Steel pôs-se atrás de Palin.

— Quem são estes? — murmurou ao ouvido do mago.

— Os guardiões da torre — avisou Palin. — Não... não os deixe chegar perto.

Os olhos se aproximaram deslizando. Deviam ser uma centena, brilhando, pálidos e frios, sob o fulgor de Nuitari.

— Em nome do Abismo, como faço para detê-los? — inquiriu Steel encostando-se a Palin, para lhe proteger os flancos, enquanto Palin lhe salvaguardava os seus. — Faça qualquer coisa: Diga qualquer coisa!

— Eu me chamo Palin Majere — anunciou Palin com voz estridente. — Deixem-me passar!

Majere... Majere... Majere...

O nome ecoou pelas muralha de pedra da torre, repercutiu pelo jardim como o repique de sinos discordantes e acabou numa gargalhada trocista.

Palin estremeceu. Steel cerrou os maxilares. O rosto do cavaleiro reluzia de suor.

Os olhos se aproximaram. Da escuridão emergiram mãos, brancas e desencarnadas. Dedos esqueléticos apontaram para os corações palpitantes dos dois seres vivos. Um toque e lhes gelaria o sangue, o coração deixaria de bater.

— Em nome de Chemosh, ordeno que se afastem! — gritou repentinamente Steel.

Os olhos chisparam de fúria.

— Se eu fosse você, não mencionaria esse nome outra vez — avistou Palin, com voz suave. — Aqui, só um deus é respeitado.

— Então, faça qualquer coisa, Senhor Mago! — respondeu Steel em tom áspero.

— Encontro-me aqui para falar com Dalamar — explicou Palin, em desespero. — Vim visitar o seu senhor.

Mentira... mentira... mentira...

As palavras lembravam o roçar de vestes invisíveis e esfarrapadas, o ranger de dedos descarnados, a cintilação dos olhos brancos e gelados.

Os guardiões espectrais acercaram-se ainda mais, formando um círculo em volta do mago e do cavaleiro, que se postaram de costas um contra o outro, Palin erguendo o bastão e Steel agarrando a espada. Mas, o cristal do bastão estava perdendo o fulgor rapidamente. Com a espada, Steel desferiu um golpe violento contra um dos espectros. A lâmina silvou, retalhando apenas a noite. Os espectros aproximaram-se ainda mais.

— Tio! — gritou Palin. — Venho te encontrar! Tio, preciso que me ajude!

A porta que dava para a torre se abriu, derramando escuridão. Os espectros se detiveram, os olhos frios e pálidos viraram-se naquela direção. Avassalado pelo receio, o júbilo e o terror, Palin sentiu-se estremecer. Inclinou-se para frente, para perscrutar as trevas.

— Tio? — gritou. Uma voz respondeu-lhe:

— Não se mexa! Fique onde está! Já vou! Já vou! Hei de salva-lo!

E Tasslehoff Pés Ligeiros emergiu da escuridão.

21

O portão se abre.

O jardim de Nuitari.

A via está preparada.

— Tio Tas! — exclamou Palin, atônito.

— Presumo não se tratar do tio que tinha em mente — disse Steel com voz soturna.

— Não. — Palin sentia-se frustrado. — Nunca...

— Consegui... está bem aqui! — o kender ancião bufava com o esforço da corrida. Deteve-se nas escadas que levavam à porta da torre, agitando algo brilhante no ar. — Não se preocupe...

— Tas, não se aproxime! — gritou Palin, em pânico. — Volte para trás! Volta para dentro!

— Não! Não — respondeu Tas. — Não compreende! Achei-a! Agora já está em segurança!

E antes que Palin pudesse dizer algo mais, o kender desceu precipitadamente as escadas e correu direto para os espectros.

A pálida luz do bastão incidiu no objeto que o kender segurava: uma colher de prata.

— Desapareçam, estúpidas aparições! — ordenou Tas, dirigindo-se num tom profundo, ríspido, autoritário, como os sacerdotes possivelmente utilizariam. Contudo, verificou que tamanha rigidez era excessiva para ele, pois acabou por ficar meio sufocado. Entre tossidas secas e muitos perdigotos, conseguiu repetir:

— Já disse para desaparecerem! Sumam! Vão embora!

E dizendo isto, agitava a colher para os espectros.

— Vamos morrer — disse Steel.

— Não — respondeu Palin, depois de observar, atônito a cena. — Não, não vamos.

Dois a dois, os olhos gelados foram se cerrando. As mãos brancas e mortíferas desapareceram no interior de mangas invisíveis. O jardim ficou deserto. A entrada para a torre permaneceu aberta.

Quando Tas se aproximou deles bamboleando para saúda-los, o brilho do bastão de Palin refletiu-se, radioso, nos olhos do kender.

— A Colher Que Revolve dos Kenders — anunciou com orgulho, levantando-a para que Palin a examinasse.

Palin preparava-se para fazê-lo, a fim de confirmar se a mesma era mágica, mas sem lhe dar tempo, Tas enfiou-a num bolso e virou-se para outros assuntos.

Estendendo a mãozinha a Steel, inquiriu polidamente:

— Como vai? Eu sou Tasslehoff Pés Ligeiros. Os amigos me chamam de Tas. Exceto Palin — acrescentou, depois de refletir um instante — Ele me chama “Tio Tas”. Na verdade, não sou tio dele. Eu e Caramon não somos parentes. Sou amigo da família. Quando eram menores do que eu, costumavam me chamar de “Vovô”. Mas, quando se tornaram crescidos, não tinha lá muita graça. De modo que, depois de alguma discussão, mudamos para “Tio”. Já tive um Tio Salta-Pocinhas. Era o que andava com a colher. Credo, a tua armadura é mesmo fantástica! A caveira e o lírio da morte lhe dão um aspecto diabólico, uma maravilha! Já sei! Deve ser um Cavaleiro de Takhisis! Já ouvi falar de vocês, mas não conhecia nenhum. É um verdadeiro privilégio. Será que já te disse que me chamo Tasslehoff Pés Ligeiros?

— Não falo com kenders — retrucou Steel.