Seus olhos detectaram movimentos. Levantando a cabeça, avistou um mago de veste negra. Na Torre da Feitiçaria Suprema, o fato não era inusitado. No entanto, o mago possuía cabelo branco, pele dourada e olhos em forma de ampulheta. A língua de Palin colou-se ao céu da boca. Começou a falar.
— Tio...
Raistlin fez um rápido movimento negativo com a mão. Os seus olhos dourados foram pousar, por breves instantes, no kender. Em seguida, a aparição desapareceu.
— Sim? — perguntou Tas, que admirava a colher. — O que estava dizendo da colher ser comum?
Palin olhou de relance pela sala. Será que alguém mais percebera a visão?
Ao que parece, não.
Steel esquadrinhava a sala, experimentando as paredes, vendo por baixo das tapeçarias, na tentativa de descobrir outra saída. Meio dormindo, Usha aninhara-se, desconsolada, numa cadeira. Tasslehoff dava palmadinhas amigáveis na colher.
— Esta colher não é comum! — prosseguiu o kender — Trata-se de uma relíquia sagrada, que foi oferecida pela Mishakal em pessoa ao meu tio Saltador de Armadilhas. Ou seria Reorx? Esqueci. Seja como for, funciona. Você mesmo assistiu.
Ninguém mais avistara Raistlin. Este aparecera para Palin e à mais ninguém. O cansaço, a dor e o desapontamento tombaram sobre o mago como uma capa atirada ao mar. Ia entrar no laboratório. O caminho fora aplanado. Como alguém dissera a respeito de Raistlin Majere:
A porta se abrirá para ele...
— Deixa eu ver outra vez. — Palin retirou a colher da mão de Tas e examinou-a. Esta coincidia exatamente com as que se encontravam na mesa.
— Tas, tem razão — disse Palin com brandura. — É um artefato sagrado. Na verdade, muito sagrado.
22
Suspeitas.
Introspecção.
O laboratório de Raistlin.
Deixaram os aposentos de Dalamar e Tas foi indicando o caminho para o laboratório, sempre com a colher espetada na mão.
Steel não se mostrou satisfeito por ter o kender como companheiro, mas, para seu espanto e raiva, Palin não tentou dissuadi-lo.
— Só um kender pode usar a Colher de Revolver dos Kenders — disse Palin com um sorriso ambíguo.
— Eu e você sabemos que a colher não é mágica — retorquiu Steel.
— Viu o que aconteceu ao espectro.
— Vi? — perguntou Steel. — Ou foi você querendo que eu pensasse que vi?
Palin evitou a pergunta.
— Levamos o kender conosco e o mantemos debaixo dos olhos. Ou prefere que ande por aí bisbilhotando à vontade? Ouça o que os duendes dizem: “Nunca vire as costas a um kender.”
— Será? — replicou Steel com frieza. — O que eu ouvi foi: “Nunca vire as costas a um mago.”
Os olhos desencarnados piscaram, reluziram e em seguida desapareceram.
Uma colher na mão de um kender não conseguia repelir tais aparições. Steel sabia disso e o mesmo acontecia com Palin. Inesperadamente, este pareceu ansioso para chegar ao destino. Apaziguadas suas dúvidas e receios, mostrava-se descontraído, confiante. Alguma coisa acontecera. Vira algo, recebera algum sinal. Mas Steel não fazia idéia do que se tratava. Seria o jovem mago muito mais poderoso do que levara a crer? Será que aquela estranha mulher de olhos dourados fazia parte de um conluio? Estariam arrastando o cavaleiro para uma armadilha?
Como nunca tivera grande propensão para acreditar em fazedores de magia, Steel decidiu vigiar Palin e a mulher de perto.
Subiram as escadas sombrias, que se erguiam em espiral e provocavam dores nas pernas, agarrados à parede, para evitar tropeçar e despencar nas trevas que se adensavam por baixo dos seus pés. Ninguém se aproximou. Ninguém interferiu. Ninguém os deteve. Parecia que, à exceção deles, a torre se encontrava deserta.
O infame laboratório da Torre da Feiticeira Suprema situava-se perto do topo da torre. O único Portal para o Abismo ainda existente ficava dentro do laboratório.
Talvez.
— Majere, fale-me desse Portal — disse Steel, enquanto subiam. Palin pareceu mostrar grande relutância em falar.
— Não sei quase nada — começou.
— Eu sei! — exclamou o kender impetuosamente. Steel ignorou-o.
— É um mago, não é, Majere? Suponho que na escola para magos, lá no lugar onde você estudou, te ensinaram essas coisas.
— Conheço a história — replicou Palin, evasivo.
— Eu também! — assentiu Tasslehoff. — Participei bastante nela. Estava com Caramon e Raistlin quando o Raistlin não era o Raistlin mas sim o Fistandantilus e entrou no Portal e tentou lutar contra a Rainha das Trevas, só que falhou. Gostariam de ouvir a história?
— Não — respondeu Steel. — Quero que me fale do Portal já que nós vamos entrar lá — acrescentou em tom contundente, olhando com intensidade para Palin.
O brilho do Bastão de Magius derramou sobre o jovem mago um vivo fulgor. Palin tinha o rosto muito afogueado e os olhos reluziam, exultantes.
Reparando no olhar de Steel, Palin afastou o bastão de modo que ficasse oculto na escuridão.
Anda tramando algo, disse Steel para consigo, redobrando a vigilância.
— Vamos voltar ao Abismo? — inquiriu Tas, não mostrando o entusiasmo que qualquer kender revelaria face à perspectiva. — Espero que saiba que o Abismo não é um lugar lá muito bonito. De fato, é horrível. Não estou bem certo se quero acompanhá-lo.
— Ótimo — interveio Steel. — De maneira que não vai. Majere prossiga a história.
— Continue falando, só isso — disse Usha. — Com alguém falando não assusta tanto.
Contudo, Palin guardou silêncio. Foram subindo até desembocarem num patamar amplo. Arquejantes, com os músculos doloridos, todos concordaram em parar. Tinham que percorrer um longo trecho íngreme ainda até chegarem à porta que dava para o laboratório, o qual se via pelo clarão das tochas. Satisfeitos com a pausa, sentaram-se no chão e esticaram as pernas.
— O Portal? — insistiu Steel, dando um encontrão no mago.
— Na verdade, pouco há para contar — respondeu Palin com um descontraído encolher de ombros. — Existiram, em tempos remotos, cinco Portais, cada um deles localizado numa das cinco Torres da Feitiçaria Suprema. Criados por artes mágicas, os Portais foram concebidos para permitirem aos feiticeiros efetuar o percurso entre as torres sem necessidade de despenderem energia em encantamentos de teletransporte.
“Os feiticeiros tinham em mente apenas franquear as portas uns aos outros e não se aperceberam que, acidentalmente, estavam criando uma rota que estabelecia uma porta entre este mundo e o outro plano de existência. Contudo, a Rainha Takhisis sabia. Presa no Abismo, ela e os seus dragões do mal aspiravam, há muito, penetrar em Krynn, no que eram impedidos por Paladino e os seus dragões do Bem. Contudo, Paladino exercia pouco domínio sobre os fazedores de magia, que gozavam da fama de seguir por caminhos próprios.
“Takhisis descobriu um feiticeiro veste negra susceptível de cair em tentação. Assumindo a forma de uma bela mulher, Takhisis aparecia em sonhos todas as noites ao feiticeiro, murmurando-lhe sedutoras promessas. Este, que se tornara obcecado pela linda mulher, jurou que haveria de encontrá-la e torná-la sua.
“Encontro-me prisioneira noutro plano, noutra época — disse Takhisis ao feiticeiro. — Só você, com o teu poder, será capaz de libertar-me. Para isso, terá que atravessar o Portal. Guarde no espírito a minha visão que eu te guiarei.
Neste ponto, Palin calou-se inesperadamente. O seu rosto, iluminado pelo clarão do bastão, assumira uma palidez extrema.