Ouviu a jovem gritar:
— Cavaleiro! Atrás de você!
Steel virou-se, de espada em punho. Dois olhos pálidos brilharam na escuridão.
— Não se incomode, Senhor Cavaleiro. A passagem está interditada.
— Mas, permitiu que o mago entrasse! E o kender — retorquiu Steel.
— Não fui eu quem os deixou passar.
— Então quem foi?
— O Senhor da Torre.
— Lorde Dalamar já regressou? Então diga-lhe para me deixar entrar! — exigiu Steel.
Os olhos se aproximaram. A friagem mortal da região dos defuntos perpassou os ossos do cavaleiro até à medula. Cerrou os dentes para evitar que rangessem e apertou a espada com mais força.
— Não me refiro a Dalamar — respondeu o espectro. — Senhor Cavaleiro, abandone já este lugar ou nunca mais sairá daqui.
— Socorro! — gritou Usha. — Por favor, alguém nos acuda!
A voz da jovem ecoou lugubremente através da escuridão, girando em círculos em redor das paredes interiores da torre e esmorecendo como uma pedra que é atirada a um poço. O som era tão estranho e aterrador, que não se atreveu a repetir o apelo.
A ajuda podia ou não chegar. O prisioneiro de Steel encontrava-se do outro lado da porta. O dever de Steel também residia do outro lado da porta. Falhara uma vez. Hesitara na soleira, em vez de entrar. O mundo dos feiticeiros era turbulento, desencorajador. O próprio ar encontrava-se prenhe e viciado de feitiçaria, nas trevas palpitavam almas penadas. Ansiava por inimigos que pudesse ver, sentir. Ansiava respirar ar puro, ouvir o retinir cristalino de espada contra espada. Ansiava abandonar este antro dos magos, mas não podia esquivar-se ao dever, mesmo na morte.
Investiu contra o espectro. A espada silvou no ar e bateu contra a parede de pedra, provocando uma miríade de centelhas.
Os olhos pálidos e reluzentes tornaram-se enormes, intumesceram, ficaram salientes. Viram-se mãos estendidas, procurando matar com seu toque cruel.
Steel voltou a investir.
— Takhisis! — gritou. — Socorra-me!
— Reza em vão, Senhor Cavaleiro — disse uma voz. — A nossa Rainha não tem jurisdição aqui.
Uma esfera de luz amarela e cálida, que uma feiticeira de vestes vermelhas segurava, afugentou as trevas. Junto dela, postado no patamar, encontrava-se um feiticeiro — um elfo de vestes negras. De início, Steel ficou estupefato, depois percebeu que o homem devia ser um elfo das trevas, um dos que se revoltaram contra a luz e foram contra os preceitos do seu povo. Que devia ser Dalamar, o Sinistro, Senhor da Torre da Feitiçaria Suprema.
Ou seria apenas o sublocatário?
Dalamar ergueu a cabeça para olhar para o Cavaleiro que se encontrava postado no chão das escadas.
— Informaram-me da presença de intrusos, que um cavaleiro e um mago Veste Branca atravessaram sãos e salvos a Clareira de Shoikan. De início, não quis acreditar. Agora compreendo. Um Cavaleiro de Takhisis. Mas, onde se encontra o Veste Branca que te acompanhava? Onde está Palin Majere?
— Ali! — respondeu Usha, apontando para o laboratório. — Entrou naquela ... naquela sala. O kender foi com ele. Depois, a porta se fechou com estrépito e não fomos capazes ...
A voz embargou-lhe. O rosto de Dalamar tornou-se lívido. Irado, o feiticeiro virou-se para o espectro que continuava a vaguear por ali.
— Falhou na tua incumbência! Dei ordens para não deixa ninguém entrar! — gritou.
— Meu amo Dalamar, as tuas ordens foram anuladas — replicou a voz, em tom grave. — Pelo verdadeiro Senhor da Torre.
Dalamar não respondeu. O seu rosto mostrava-se lívido e frio, não estaria tão frio se as mãos geladas do morto-vivo o tivessem tocado.
Steel sentiu o poder do elfo das trevas, sentiu o calor da sua raiva. Não se surpreenderia se, por esse motivo, visse as paredes da torre começarem a arder. Usha encolheu-se e agarrou-se à parede de pedra. Até a feiticeira, companheira do elfo, involuntariamente retrocedeu um passo. Steel procurou manter-se firme pois, em abono da verdade, nada mais podia fazer.
Depois, Dalamar se acalmou. A chama que lhe inflamava os olhos esmoreceu e estes assumiram uma expressão abstrata. Recolhera-se em introspecção.
— Afinal de contas, talvez seja melhor assim. Ele é capaz de saber alguma coisa ...
Um sorriso sardônico retorceu a boca de Dalamar.
— Jena, parece que isto nos transcende. Pelo menos por hora.
— Parece que sim — concordou a feiticeira, olhando para a porta trancada, para o cavaleiro postado diante da mesma e para a mulher encolhida contra a parede. — Que vai fazer com estes dois?
Os olhos de Dalamar voltaram a pousar no cavaleiro e parecia que o elfo das trevas o estava vendo pela primeira vez.
— Será, por acaso, Steel Montante Luzente?
Steel disfarçou a estupefação, recordando a si mesmo que se encontrava na presença de um poderoso feiticeiro.
— Sou — respondeu com orgulho.
— O filho de Kitiara? — exclamou Dalamar. — Eu devia ter reparado na semelhança! Conheci a tua mãe — acrescentou, em tom ambíguo.
— Assassinou a minha mãe — replicou Steel com voz furibunda.
— É claro que considera uma dívida de honra que deverá ser resgatada com o meu sangue — respondeu Dalamar com um encolher de ombros. — Muito bem. Vai me desafiar e eu aceito. Ataca-me e eu te mato. Perde-se um bom soldado. Takhisis não ficaria satisfeita com nenhum de nós. Steel Montante Luzente, matei a tua mãe em combate. Ela atacou primeiro. Posso te mostrar aquela cicatriz. Infelizmente, não posso te mostrar as outras seqüelas que ela me provocou.
As últimas palavras foram proferidas em voz baixa. Como não estava certo de tê-las ouvido, Steel preferiu ignorá-las. Consultou a Visão, como faziam todos os Cavaleiros de Takhisis quando defrontados com um dilema. Seria vontade Sua que lutasse contra aquele elfo das trevas e, na tentativa, muito provavelmente perdesse a vida? Seria vontade Sua que se mantivesse, em vão, postado à porta do laboratório? Ou será que Ela lhe reservara outros planos?
Sondou a Visão. Uma imagem da mãe penetrou-lhe o espírito. Empunhava a espada, como se fosse usá-la. Mas vislumbrou, atrás dela, outra silhueta — um dragão com cinco cabeças. A mãe encontrava-se postada à sombra do dragão. A cena ainda lhe parecia confusa ...
— Senhor Cavaleiro! — Há algum tempo que Dalamar o chamava, ao que parece na tentativa de lhe captar de novo a atenção.
— Meu Senhor, que disse? — perguntou Steel, franzindo o cenho e tentando ainda sondar a vontade da Rainha das Trevas.
— Disse que alguém está tentando se comunicar contigo — repetiu Dalamar, em tom paciente. — Acho que é o teu comandante.
— Senhor, como é possível? — Steel sentia-se desconfiado. — Ninguém sabe que me encontro aqui. O que ele diz?
— Não faço idéia — replicou Dalamar, com uma pontinha de irritação. — Não sou nenhum garoto de recados. E se sabe que está aqui, presumo que foi alguém que lhe contou. Possivelmente o mesmo alguém que te guiou, são e salvo, através da Clareira de Shoikan. Montante Luzente, se abandonar o teu posto, o conduzirei a um local onde poderá se comunicar com o teu superior. Garanto-lhe — acrescentou —, o teu esforço é inútil. Nem sequer eu posso entrar naquele laboratório. O tio mandou vir o sobrinho. Temos que deixá-lo ao cuidado dos dois.
— Palin Majere era meu prisioneiro — respondeu Steel, ainda hesitante. — Aceitei a palavra dele.
— Ah! — exclamou Dalamar, revelando uma súbita empatia. — Nesse caso, encontra-se perante uma difícil tomada de decisão.
Um instante depois, Steel já a tomara. O comandante sabia que ele se encontrava ali. Tinha de ser Takhisis, querendo que o cavaleiro enveredasse por uma direção diferente. Também devia ser vontade Sua que permanecesse vivo. Steel embainhou a espada e desceu as escadas.