Um par de culotes de veludo encarnado, meias pretas, sapatos pretos com saltos encarnados e um chapéu de aba larga com uma vistosa pluma vermelha, completavam a requintada indumentária do duende. Possuía uma barba preta comprida e acetinada, que chegava a sua roliça cintura. O cabelo, negro, comprido e encaracolado, emoldurava-lhe os ombros.
O perfume forte de fruta fresca, banhada pelo Sol do meio-dia, distraiu a atenção de Usha. Depois do festim na Torre da Feitiçaria Suprema, não esperava sentir-se com fome de novo, mas o estômago informava que isso acontecera já a algum tempo. Usha lançou um olhar rápido e furtivo ao vendedor e, aliviada, verificou não se tratar do que a mandara prender.
No entanto, servira-lhe de lição. Com um suspiro, desviou o olhar e ordenou às entranhas que pensassem noutra coisa. Estas recusaram-se emitindo um ronco.
Contudo, ao duende não passou despercebido o olhar da jovem, nem tampouco o suspiro e o ronco.
— Sirva-se à vontade, menina — disse-lhe, com um aceno de mão. — As ameixas não estão tão frescas como de manhã, mas às vezes encontram-se em bom estado, embora um pouco engelhadas do calor.
— Obrigada — respondeu Usha, recusando-se a olhar na direção da faita —, mas não tenho fome.
— Então engoliu um cãozinho — observou o duende com rudeza. — Daqui ouço o animal latindo. Coma. Eu já almocei, de modo que não fico ofendido.
— Não é isso — respondeu Usha, com o rosto afogueado. — Eu... não tenho nenhuma daquelas coisas que chamam de “moedas”...
— Ah, isso é aborrecido. — Dougan cofiou a barba e olhou para a jovem com ar pensativo. — É a primeira vez que vem à cidade, hein?
Usha aquiesceu com a cabeça.
— Onde vive?
— Em nenhum lugar especial — respondeu Usha em tom evasivo. O duende estava se interessando muito pelos seus assuntos particulares. — Se me dá licença...
— O que você faz para ganhar a vida?
— Oh, isto e aquilo. Olhe, senhor, foi um prazer falar contigo mas...
— Compreendo. Acaba de chegar à cidade, anda à procura de trabalho e está sendo difícil?
— Bom, senhor, sim, é isso ...
— Acho que posso ajudá-la. — Inclinando a cabeça para o lado, Dougan mirou-a com ar crítico. — Veio tão sorrateira que me apanhou desprevenido. Não a ouvi se aproximando, é o que é. — Inclinando-se para frente, pegou-lhe a mão e pôs-se a examiná-la. — Dedos esguios. Ladra, suponho. É rápida? Experiente?
— Acho que sim. — Usha olhou, confusa, para o duende.
Dougan largou-lhe a mão como se esta fosse uma peça de fruta exposta ao Sol, mirou-lhe por longo tempo os pés e depois o rosto, murmurando para consigo:
— Olhos que conseguiriam desviar a atenção de Hiddukel da contagem do dinheiro. Feições que arrancariam Chemosh da sepultura. Serve. Sim, é verdade, menina — acrescentou em voz alta. — Conheço umas pessoas que andam à procura de talentos como você.
— Que talento? — inquiriu Usha. — Eu não ...
Mas Dougan já não a escutava. Retirando um cacho de uvas, estendeu-o a Usha. Acrescentou várias ameixas, uma grande abóbora e teria dado também umas cabeças de nabo se as mãos de Usha pudessem agarrar tudo. Depois, o duende fez menção de ir embora.
— Eh! Oh! Não se esqueceu de nada? — O vendedor, um humano grandalhão, estivera falando com vários amigos a respeito dos boatos sobre a queda de Kalaman. Ver alguém tentar lhe roubar a mercadoria, o fez esquecer da guerra iminente. Precipitando-se para o duende, acrescentou:
— Falei contigo! Não se esqueceu de nada?
Detendo-se, Dougan pôs-se a retorcer o bigode.
— Acho que sim. Os nabos. — Pegando em vários, começou de novo a se afastar.
— Falta uma coisinha de nada. O meu dinheiro — disse o vendedor, impedindo-lhes a passagem.
Usha encheu a boca de bagos de uvas e engoliu-os apressadamente, determinada a comer o maximo que pudesse, antes de a obrigarem a devolver a faita.
— Põe na conta — disse Dougan com ar despreocupado.
— Ó galinho, isto não é nenhuma taberna! — rosnou o homem, cruzando os braços no peito. — Pague.
— Digo-lhe o que farei, meu bom homem — respondeu Dougan com voz afável, embora parecesse algo desagradado pelo homem chamá-lo de “galinho”. — Vou jogar uma moeda para o ar. — Mostrou uma moeda de ouro, que fez luzir os olhos do outro. — Se, em três vezes, a cara do senhor ficar duas para cima, a fruta é minha. Combinado? Combinado.
Dougan lançou a moeda. Convencido, o vendedor observou-a rodopiar no ar. A moeda aterrou na travessa da carroça, com a cara para cima. O homem mirou-a com atenção.
— Eh, não é uma moeda de Palanthas! E não é do suserano. Esta cara parece ser ...
Com um gesto rápido, Dougan apossou-se da moeda.
— Tirei a moeda errada — disse, e antes que o homem pudesse protestar, atirou-a de novo ao ar. Voltou a sair cara — de suserano ou de duende.
— Ah, que pena! — exclamou Dougan em tom complacente, estendendo a mão para guardar a moeda no bolso.
Porém, o vendedor adiantou-se.
— Obrigado — disse, agarrando-a. — Deve equivaler às compras que fez.
A cara de Dougan ficou escarlate.
— Você perdeu! — rugiu.
Examinando a moeda com mais atenção, o vendedor começou a virá-la.
— Ora, não importa — acrescentou Dougan. Afastando-se em passo lento, deu um puxão em Usha para que o acompanhasse. — Eu sempre digo que não importa perder ou ganhar, mas sim a forma como participamos do jogo.
— Ei! Duende! — gritou o vendedor. — Tentou me enganar! Esta moeda tem duas caras. E ambas parecem ...
— Apresse-se, menina! — insistiu Dougan, estugando o passo. — Não tem o dia todo!
— Ei! — O vendedor pôs-se a gritar a plenos pulmões. — O ouro está desaparecendo! Detenham aquele duende ...
Dougan pusera-se a correr, fazendo ecoar as grossa botas pelas pedras das calçadas.
Agarrada às frutas, Usha estugou o passo para conseguir acompanhá-lo.
— Vire à direita! Desça aquela viela! — gritou-lhe Dougan, bufando e arquejando.
Precipitara-se para uma viela escura. Olhando para trás, Usha reparou que os perseguidores se detinham à entrada da viela.
O vendedor apontava, bajulava, implorava.
Os homens afastaram-se, abanando a cabeça.
O vendedor — depois de gritar uns quantos impropérios contra Dougan — virou as costas e se foi, furioso.
— Não vieram atrás de nós — observou Usha, admirada.
— Pensaram duas vezes — respondeu Dougan. Abrandando o passo, começou a abanar-se com o chapéu. — Provavelmente repararam que eu trazia a espada.
— Mas não traz.
— Estão em dia de sorte — retrucou o duende, piscando, manhoso, o olho. Usha olhou ao redor com nervosismo. A viela encontrava-se mais limpa do qualquer outra que vira em Palanthas. E também mais escura, mais vazia e mais calma. Um corvo aterrou no chão, calmo e confiante, e começou a debicar uma ameixa que ela deixara cair. Usha estremeceu. Aquele lugar desagradava-lhe.
— Sabe onde estamos?
O corvo parou de debicar e, inclinando a cabeça, mirou-a fixamente com uns olhos amarelados que lembravam contas.
— Sei sim, menina — respondeu Dougan Martelo Vermelho com um sorriso. — Por estas bandas vivem umas pessoas que eu quero que conheça. Precisam de alguém como você que lhes faça uns trabalhinhos. Acho que é mesmo o que elas querem, menina. Tal e qual.