O mago encontrava-se postado na entrada da viela. A cabeça, oculta pelo capuz, estava virada naquela direção, como que à procura de alguém. A viela era comprida, a escuridão cerrada e Usha e o duende encontravam-se no outro extremo. Talvez não a tivesse visto ainda.
Usha avançou, pegou na mão de dedos achatados de Geoffrey Linchado e apertou-a até quase arrancá-la.
— Tenho muito prazer em conhecê-lo — disse, ofegante. — Trabalharei duro! Sou uma ótima trabalhadora! — Passando, apressada, por ele, mergulhou na escuridão do armazém, saboreando com prazer a atmosfera fétida.
Dougan e o ladrão pareceram algo surpreendidos com o entusiasmo da jovem.
— O que posso afirmar é que se mexe depressa — comentou Linchado, torcendo a mão. — E também aperta bem...
Do cinturão preto, Dougan retirou uma bolsa com dinheiro e sopesou-a.
— Combinado — disse Linchado e, em tom polido, convidou Dougan a entrar. — Garota, como se chama?
— Usha — respondeu a jovem, olhando, ansiosa, ao redor.
O interior do armazém era cavernoso. Parte do assoalho encontrava-se juncado de mesas e de cadeiras, como uma sala comum de estalagem. Nas paredes ardiam tochas e sobre as mesas viam-se velas grossas acesas. Sentadas em volta das mesas havia pessoas que bebiam, comiam, jogavam, falavam ou dormiam. Ali, viam-se representantes de todas as raças e faixas etárias existentes em Ansalon. O Grêmio dos Ladrões podia ter os seus defeitos, mas o preconceito não era um deles. Dois humanos bebiam na companhia de três elfos. Um duende jogava dominó com um ogro. Um trasgo e um kender entretinham-se num concurso de bebidas. Uma feiticeira Veste Vermelha mantinha, com um minotauro, uma acesa discussão a respeito de Sargonnas. Havia crianças correndo em volta das mesas, brincando de pega pega. O resto do armazém encontrava-se mergulhado nas trevas, pelo que Usha não teve oportunidade de ver o que albergava.
Ninguém olhou para ela. Ninguém lhe prestou a menor atenção. Julgando que não fazia mal impressionar o futuro patrão, a jovem acrescentou:
— O meu nome completo é Usha Majere. Sou filha de Raistlin.
— Ah, pois — retrucou Geoffrey Linchado. — E eu sou a mãe dele — rematou, cuspindo no chão.
Usha olhou-o fixamente e replicou:
— Desculpe, não entendi.
— Filha de Raistlin! — replicou Linchado, com uma gargalhada desagradável. — É o que todas dizem. No ano passado, apareceram três afirmando a mesma coisa. — A voz do homem tornou-se mais agreste. Os olhos de doninha mostravam-se frios, inexpressivos. — Vamos ver então, quem é você na verdade? Espiã não é, é? — Em menos de um piscar de olhos, havia uma faca reluzindo na mão de Linchado. — Reservamos, para os espiões, um tratamento rápido e completo, não é verdade, irmãos?
Os outros sócios já tinham se levantado, retirado facas das botas e desembainhado espadas. No ar crisparam-se cânticos e palavras de encantamento, acompanhados pelo som feérico de uma braçadeira hoopak a rodopiar.
Usha recuou e foi bater na porta trancada. Dougan interpôs o corpo rotundo entre ela e o diretor do grêmio. Estendendo-lhe a bolsa, disse:
— Geoffrey Linchado, você me conhece! Para que haveria de trazer para cá um espião? Com que então, a menina afirma que o pai é Raistlin Majere. — Dougan, que parecia algo excitado com a frase, olhou de soslaio para Usha, mas prosseguiu em tom galhofeiro: — E quem pode assegurar que não é? Quantos de vocês — acrescentou, lançando um olhar mordaz à assistência —, podem, sob juramento, afirmar quem são os seus pais?
A avaliar pelos murmúrios e acenos de cabeça, a maior parte parecia concordar com o argumento do duende. A bolsa recheada também lhe dava uma certa consistência.
— Garota, desculpe se me precipitei — disse Linchado, desaparecendo-lhe a faca da mão de forma tão misteriosa e célere como aparecera. — Meus nervos são extremamente sensíveis. — Virando-se para Dougan, acrescentou: — Aceitamos a menina como aprendiz, como experiência. Quer que a treinemos para quê?
— Para um serviço especial — respondeu Dougan, em tom evasivo.
Linchado franziu o cenho.
— Duende, que tipo de trabalho? — inquiriu.
Fosse o tamanho da bolsa menor e Linchado não teria contemplações. Assim, limitou-se a pôr um ar carrancudo e dizer:
— Não se esqueça que o grêmio quer uma fatia.
Dougan relanceou o olhar pelos que presenciavam a cena, e quando se deteve nas crianças, a sua expressão rígida suavizou-se. Retirou o chapéu com a pluma elegante e cingiu-o ao peito, como se proferisse um juramento.
— Se formos bem sucedidos, todos receberão um quinhão. Juro. Se falharmos, ninguém é culpado. — Deu um suspiro, e por um instante pareceu abatido.
Linchado arrebanhou lestamente a bolsa.
— Combinado — respondeu. — O que lhe ensinamos? A apanhar, a baixar-se, a lançar a isca, a pôr a isca?
Ele e Dougan dirigiram-se para um canto e embrenharam-se numa interessante conversa.
Vendo uma cadeira vazia junto de uma mesa, Usha sentou-se. Uma criança esfarrapada trouxe-lhe um prato de guisado e uma caneca de cerveja. Comeu vorazmente. A única coisa a toldar-lhe a boa disposição era Palin e o seu destino. Mas o coração dos jovens é sempre otimista, em especial quando já sentiu as primeiras pungências agridoces do amor.
Os deuses não facilitariam o nosso encontro se o desígnio fosse nos separarem cruelmente depois. Era esta a convicção de Usha, em grande parte fruto da fé sentida e não da percepção da dura realidade.
Terminada a refeição, Usha sentia-se descontraída e feliz na sua nova situação. Por mais rudes que fossem as palavras daquelas pessoas, por estranhas e sinistras que parecessem, Usha deixara de temê-las.
Lançar a isca. Pôr a isca.
Claro, eram pescadores.
LIVRO 3
1
A advertência.
Os três se encontram.
Tanis tem que escolher.
Tanis encontrava-se nas ameias mais altas da Torre do Sumo Sacerdócio, olhando para a estrada deserta que desembocava na cidade de Palanthas. Percorreu-a em espírito, chegou à cidade e imaginou o alvoroço.
Ao romper do dia, espalhara-se o boato da chegada iminente do inimigo. Era meio-dia. Fechadas as lojas e as tendas, as pessoas afluíram às ruas, escutando, ávidas, os aimorés. Quanto mais incríveis fossem, mais elas acreditavam.
Claro que, pela tardinha, o Suserano de Palanthas teria o seu discurso preparado. Postado à varanda, procederia à leitura, no qual tranqüilizava a população, afirmando que a Torre do Sumo Sacerdócio se erguia entre eles e o inimigo. Lida a reconfortante mensagem, se retiraria para jantar.
Tanis suspirou, dizendo:
— Quem me dera que alguém viesse me reconfortar!
E alguém veio, não pela estrada, antes por uma via muito pouco convencional, mas não lhe trouxe conforto nem tranqüilidade.
Tanis percorreu as ameias na direção leste, virou-se e preparava-se para retroceder, quando quase bateu num feiticeiro Veste Negra que lhe bloqueava o caminho.
— Mas o que... — Tanis agarrou-se com força ao alto do paredão, a fim de se equilibrar. — Dalamar! Onde estava?...
— Em Palanthas. Viajei pelas estradas da magia e não tenho tempo para ouvi-lo cuspindo perdigotos. É você o responsável por estas bandas?
— Eu? Credo! Não! Estou só...
— Então leve-me à presença de quem esteja — interrompeu-o Dalamar com impaciência. — E diga àqueles palermas para embainharem as espadas antes que os transforme em poças de metal fundido.
Vários cavaleiros, que se encontravam de vigia nas ameias, tinham sacado das espadas e rodeavam agora o elfo das trevas.
— Baixem as armas — disse-lhes Tanis. — Este é Lorde Dalamar, da Torre da Feitiçaria Suprema. É bem capaz de concretizar a ameaça, e vamos precisar de todas as espadas que pudermos arranjar. Um de vocês vá falar com Sir Thomas e diga-lhe que lhe solicitamos um encontro imediato.