Os cavaleiros mostraram-se incapazes de contradizer em absoluto um testemunho tão eloqüente e comovedor. Julgaram que Tanis Meio Elfo, embora possivelmente desencaminhado, agira movido pela honra. O incidente fora encerrado, mas, Tanis constatava-o agora, não esquecido.
Nem, ao que parece, perdoado.
Sir Thomas suspirou e voltou a cofiar os bigodes. Olhou para os outros dois que, à sua muda pergunta, aquiesceram afirmativamente em silêncio.
— Lorde Dalamar, agradeço-te o aviso — disse Thomas. — Devo dizer-te que a tua informação corresponde em absoluto à que obtivemos de outras fontes. Esperávamos este ataque, embora não tão cedo. Estamos preparados.
— Não vejo grandes preparativos — respondeu Dalamar em tom ambíguo. Debruçando-se na cadeira, apontou para o mapa que se encontrava desdobrado sobre a mesa. — Senhor, não vai enfrentar uma pequena força de cavaleiros. Trata-se de um exército, de um grande exército de muitos milhares de efetivos. Recrutaram bárbaros de uma região distante para lutar por eles. Possuem feiticeiros, feiticeiros poderosos, como me foi dado constatar, que obedecem apenas a leis de magia muito próprias.
— Temos consciência disso — começou Sir Thomas.
— Mas, senhor, o que possivelmente não saberão é que atravessaram Neraka. Sacerdotes das trevas penetraram nas ruínas assombradas e convocaram as sombras dos mortos para se juntarem à luta. Pararam no Baluarte de Dargaard e não tenho dúvidas de que, entre as forças atacantes, irão encontrar Lorde Soth e os seus guerreiros. Lorde Ariakan os lidera. Vocês mesmos o treinaram! Conhecem o seu valor melhor do que eu.
Isso era óbvio, a avaliar pela expressão soturna do rosto dos cavaleiros. Sir Thomas agitou-se na cadeira.
— Lorde Dalamar, tudo o que disse é absolutamente correto. Os nossos batedores confirmaram. No entanto, e aqui entre nós, enquanto houve homens de fé a defendê-la, a Torre do Sumo Sacerdócio nunca tombou.
— Talvez porque nunca houve homens de fé atacando-a — disse Lady Crysania inesperadamente.
— Os Cavaleiros de Takhisis foram criados juntos desde a infância — disse Dalamar. — São incondicionalmente leais à sua Rainha, aos comandantes e uns aos outros. Sacrificarão tudo, incluindo a vida, em prol da causa. Vivem segundo um código de honra tão rígido como o seu. Para falar a verdade, Lorde Ariakan concebeu-o nos moldes do seu. Meus senhores, sou de opinião que nunca se defrontaram com tamanho perigo.
Dalamar fez um gesto na direção da janela.
— Você diz que estão preparados, mas o que vocês fizeram? Olho lá para fora e vejo a estrada principal, que deveria se encontrar cheia de cavaleiros a cavalo mais os respectivos servidores, de linhas de soldados de infantaria, carroças e carretas equipadas com armas e mantimentos. Contudo, a estrada encontra-se vazia!
— Sim, está vazia — replicou Sir Thomas. — Quer saber porque motivo? — Dobrando as mãos, pousou-as no mapa e passeou o olhar pelos três. — Porque foi tomada pelo inimigo.
Tanis deu um suspiro e esfregou o queixo barbudo.
— Dalamar, enviamos batedores. Viajaram montados em dragões, a fim de convocar os cavaleiros às armas. Partiram há três dias. Aí tem a resposta.
— Os cavaleiros com terras e castelos nas fronteiras orientais mandaram informar que já se encontravam cercados. Alguns nem chegaram a responder — disse Sir Thomas baixinho. — Em muitos casos, os mensageiros enviados para trazer os cavaleiros não regressaram.
— Entendo — murmurou Dalamar, franzindo o cenho, imerso em seus pensamentos. — Perdoem-me. Não dei por isso.
— Os exércitos de Ariakan movimentam-se à velocidade de um rastilho aceso. Está mandando as tropas, bagagens e engenhos para cercos efetuarem a travessia do rio Vingaard valendo-se de uma armada imensa de barcaças. Nesta época do ano, o rio encontra-se, em geral, caudaloso, mas agora, devido à seca, está uniforme e plácido como uma caneca de cerveja morna. As barcaças deslocam-se velozmente, manobradas pelos bárbaros do leste.
— Nenhum obstáculo poderá deter o exército dele. Conta, nos seus efetivos, com animais enormes conhecidos por mamutes, que gozam da fama de derrubarem árvores vivas com a cabeça, de arrancarem os troncos com a longa tromba e espezinharem-nos como se fossem rebentos. Os céus são sobrevoados por dragões do Mal, que guardam o exército e que com o seu bafo do medo envenenam o coração e a mente de quem se atrever a enfrentá-los. Desconheço os mortos-vivos de Neraka ou Lorde Soth, mas o que posso afirmar é que não me surpreendem.
Sir Thomas endireitou-se, com uma expressão grave, embora implacável e digna no rosto. Falou em voz sóbria, de olhar firme e imperturbável.
— Meus senhores, senhora, estamos preparados. Quanto menor for o número, maior será a glória. É o que dizem. — O cavaleiro esboçou um leve sorriso. — Além disso, Paladino e Kiri-Jolith estarão conosco.
— Que as bênçãos deles os acompanhem — disse baixinho a Venerada Filha Crysania, tão baixinho que quase não a ouviram. Pensativa, sorumbática, acariciou a cabeça do tigre.
Sir Thomas olhou-a preocupado.
— Venerada Filha, o dia está se escoando. Deve regressar a Palanthas antes que a noite caia. Mandarei escoltá-la...
Lady Crysania levantou a cabeça.
— Nem pense em semelhante tolice, Sir Thomas. Precisa de todos os homens de que dispõe. Um dragão dourado, que me serve em nome de Paladino, trouxe-me aqui. O Chama de Ouro nos levará de volta em segurança. — Acariciando o tigre, que se levantara, acrescentou: — Tandar, o meu guia, velará para que nenhum mal me aconteça.
O tigre Tandar olhou fixamente para todos e Tanis não teve dúvidas de que, junto daquele companheiro feroz, selvagem e leal, Lady Crysania ficaria tão segura como na companhia de um regimento de cavaleiros.
A sacerdotisa levantou-se e fez menção de partir. Os cavaleiros, Tanis e Dalamar imitaram-na, num gesto de respeito.
— Vários sacerdotes que irão ajudá-los já se encontram a caminho. Conduzem uma carroça cheia de mantimentos e chegarão aqui por volta do anoitecer. Senhor, ofereceram-se como voluntários — acrescentou, antecipando-se às objeções de Sir Thomas. — Acho que vai precisar deles.
— Serão bem-vindos — respondeu o cavaleiro. — Obrigado, Venerada Filha.
— É o mínimo que posso fazer — replicou ela com um suspiro. — Adeus. Que os deuses estejam convosco. Me lembrarei de vocês em minhas orações.
Virou-se e, guiada pelo tigre, abandonou os aposentos. Ao passar por Tanis, este a ouviu acrescentar, num doce murmúrio:
— Se é que alguém me ouve...
— Eu também estou de partida — disse Dalamar. — Ofereceria o contributo da magia, mas sei que não aceitariam. Não obstante, lembro-os que Lord Ariakan atribuiu aos feiticeiros que integram o seu exército um estatuto e uma categoria idênticos aos dos cavaleiros.
Sir Thomas desculpou-se convenientemente.
— Digno Feiticeiro, estou ciente disso e agradeço-lhe a oferta. Os nossos cavaleiros nunca praticaram a arte de aliar o aço à feitiçaria. Receio que, em tais circunstâncias, os danos superassem o que de bom fosse feito.
— Senhor, provavelmente tem razão — respondeu Dalamar com um sorriso sardônico. — Bom, desejo a todos a melhor sorte. Espero não melindrá-los quando digo que precisarão dela. Adeus.
— Obrigado, Lorde Dalamar — replicou Sir Thomas. — É bem possível que a tua advertência tenha salvo o dia.
Dalamar encolheu os ombros, como se o assunto já não lhe interessasse. Olhando para Tanis, perguntou:
— Acompanha-me?
Sir Thomas mirou Tanis. Todos os presentes na sala fixaram os olhos em Tanis.
Será que partiria ou ficaria?
Tanis cofiou a barba, ciente de que teria de tomar uma decisão. A única forma de partir em segurança seria enveredando pela trilha de Dalamar, viajar pelas estradas da magia.