Aproximando-se de Tanis, Sir Thomas pediu para lhe falar a sós.
— Fico à sua espera, Meio Elfo — disse Dalamar, acrescentando, contundente: — Mas não por muito tempo.
Tanis e Sir Thomas saíram e encaminharam-se para uma pequena varanda que se situava do lado de fora da sala do Conselho de Cavaleiros. O Sol ainda não se pusera, mas as sombras das montanhas, derramando-se sobre a torre, apressavam o cair da noite. Num pátio embaixo, encontrava-se Chama de Ouro, um animal dourado, enorme e magnífico, o dragão às ordens da Venerada Filha Crysania. Outros dragões, a maioria prateados, sobrevoavam a torre em círculos, mantendo-se de atalaia.
Sir Thomas inclinou-se sobre a balaustrada e perscrutou as trevas que se adensavam.
— Tanis, vou falar sem rodeios — disse o cavaleiro em tom calmo. — Posso utilizar o teu auxílio. Não apenas a tua espada. Preciso do teu comando. Os cavaleiros que ficaram para defender a torre são sobretudo garotos, recém-integrados na cavalaria. Os respectivos pais e irmãos, a quem, em circunstâncias normais, eu delegaria o comando, encontram-se nas suas terras, defendendo as mansões e as cidades.
— Que é onde eu deveria estar — disse Tanis.
— Pode crer que sim — concordou rapidamente Sir Thomas. — Se partir, serei o primeiro a desejar-lhe sorte. — Virando-se, o cavaleiro fitou Tanis nos olhos. — Conhece a situação tão bem quanto eu. Enfrentamos forças esmagadoras. A Torre do Sumo Sacerdócio tem que agüentar, caso contrário toda a Solamnia cairá. Ariakan assumirá o controle do Norte de Ansalon e ali estabelecerá a sua base de operações. Daí, atacará a seu bel-prazer o Sul. Longos meses decorrerão antes de podermos nos reagrupar e reconquistar a torre... se isso for possível.
Tanis sabia disso, sabia perfeitamente. Também sabia que, se há cinco anos, o povo de Ansalon tivesse dado ouvidos a ele, a Laurana, a Lady Crysania e, sim, até a Dalamar, isso nunca aconteceria. Se ao menos os Elfos, os Duendes e os Humanos pusessem de lado as suas questões e preocupações mesquinhas e se juntassem para formar a aliança por eles proposta, a torre possuiria defensores, mais do que os necessários.
Pelo espírito de Tanis desfilaram as imagens: arqueiros elfos alinhados nas ameias, valentes guerreiros duendes postados junto aos portões, todos a lutar ombro a ombro com os seus camaradas humanos.
Um quadro bonito, mas que nunca seria pintado.
Se eu regressar para casa, pensou, irei encontrá-la vazia.
Laurana não estaria lá. Ela e Tanis já haviam trocado as despedidas. Na altura, ambos saberiam que esta partida poderia ser a última. As recordações afluíram-lhe ao espírito.
Ao efetuar o trajeto de Consolação à Torre do Sumo Sacerdócio, Tanis parara em casa, à espera do acolhimento caloroso que sempre recebia.
Tal não aconteceu.
Ninguém acorreu dos estábulos para acudir às necessidades do grifo sobre o qual voara. Nenhum servo veio recebê-lo à porta. Os que se encontravam por ali, trazendo e levando mensagens, dirigiam-lhe saudações apressadas e desapareciam noutras partes da grande mansão. Não viu Laurana, a mulher, em parte alguma. Ao meio da entrada encontrava-se um grande baú de viagem, que lhe dificultou a passagem. Dos andares de cima veio-lhe o som de vozes e passos. Subiu as escadas, à procura de uma resposta para todo aquele desassossego e confusão.
Foi encontrar Laurana no quarto. Viam-se roupas espalhadas pela cama e por todas as outras superfícies desocupadas, dispostas em cadeiras e penduradas nos biombos pintados à mão. No meio do quarto encontrava-se outro baú de viagem, menor do que o do andar de baixo. Laurana e três criadas escolhiam, dobravam e embalavam as peças, sem perceber que Tanis se encontrava postado à soleira.
Tanis permaneceu em silêncio, aproveitando esses instantes fugazes para observar a mulher sem que esta desse por isso, ver o fulgor do Sol refletir-se no seu cabelo dourado, admirar-lhe a graciosidade dos movimentos, ouvir a música que fluía da sua voz. Dela captou uma imagem que guardaria na mente, tal como guardava perto do coração o seu retrato pintado em miniatura.
Laurana era elfa e os elfos não envelhecem tão rapidamente como os humanos. Para alguém de fora, parecia, à primeira vista, no início da idade adulta. Se tivesse permanecido na pátria dos Elfos, possivelmente manteria esse aspecto de juventude eterna. Mas não o fizera. Optara por casar com um mestiço, cortara os vínculos com a família e os amigos e passara a residir em território dos humanos. E, nesse entretanto, passara os anos tentando, infatigável e incessantemente, pôr termo ao conflito que opunha as duas raças.
O trabalho, os fardos da vida, os períodos de esperança e depois a destruição dos sonhos acabaram por desbotar a vibrante serenidade e pureza da elfa. Não havia rugas ou vincos sulcando-lhe a pele, mas nos olhos pairava a sombra da tristeza. O cabelo permanecia da cor do ouro, sem laivos grisalhos, mas o seu brilho diminuíra. Qualquer elfo que olhasse para Laurana, diria que envelhecera prematuramente.
Ao admirá-la, Tanis sentiu por ela um amor mais ardente do que nunca. E nesse momento soube que possivelmente seria aquela a última vez que se encontravam nesta vida.
— Hum-hum! — pigarreou em voz estridente.
Sobressaltadas, as servas ficaram sem respiração. Uma deixou cair o vestido que dobrava.
Debruçada na arca, Laurana levantou a cabeça, endireitou-se e sorriu.
— Que vem a ser isto tudo? — perguntou Tanis.
— Acabem de embalar as coisas — indicou Laurana às criadas — e coloquem o resto das roupas na despensa. — Depois abriu caminho por entre as capas e chapéus até finalmente chegar junto do marido.
Beijou-o com afeto e ele reteve-a contra si. Guardando um silêncio cúmplice, por um momento deixaram que os corações batessem em uníssono. Depois, Laurana conduziu Tanis ao gabinete de trabalho e fechou a porta. Virou-se para ele, de olhos brilhantes.
— Adivinha! — exclamou e, antes que respondesse: — Recebi uma mensagem de Gilthas! Convidou-me para ir a Qualinesti!
— O quê! — respondeu Tanis, estupefato.
Laurana empenhara-se infatigavelmente no sentido de obrigar os elfos de Qualinesti a admiti-la nos seus territórios, a fim de estar perto do filho. Vezes sem conta vira a sua proposta recusada e fizeram-lhe saber que se ela ou o marido se aventurassem perto da fronteira do domínio elfo, correriam perigo de vida.
— Porquê esta mudança repentina? — perguntou Tanis, soturno. Laurana não respondeu. Desdobrou o pergaminho que fora selado com o timbre do Sol, o timbre do Orador do Sol, agora o título de Gil.
Tanis examinou o selo quebrado, desdobrou o pergaminho e leu-o com atenção.
— É a caligrafia de Gil — disse —, mas não as palavras do nosso filho. Alguém as ditou e ele escreveu o que lhe mandaram.
— É verdade — replicou Laurana, imperturbável —, mas continua a ser um convite.
— Um convite para a catástrofe — disse Tanis abruptamente. — Mantiveram Alhana Brisa das Estrelas prisioneira. Ameaçaram-na de morte e estou certo de que a assassinariam caso Gil se recusasse a ceder aos esquemas dos senadores. Trata-se de uma armadilha.
— Ora, é claro que é, tonto! — respondeu-lhe a esposa, com um brilho divertido no olhar. Deu-lhe um beijo rápido na face e acariciou-lhe a barba, cujos fios grisalhos ele já desistira de contar. — Mas, como o querido Flint costumava dizer: “Uma armadilha só funciona quando, sem a ver, caímos lá.” Pressinto-a a léguas de distância. Ora — acrescentou, risonha, para aborrecê-lo —, até você a viu, mesmo sem por os óculos!
— Só uso para ler — respondeu Tanis, fingindo-se irritado. O fato de estar envelhecendo constituía o tema de uma piada que há muito partilhavam. Estendeu-lhe os braços e ela aninhou-se contra o marido. — Presumo que não recebi um convite idêntico, não é verdade?