— Não, meu querido — respondeu ela em tom gentil. — Lamento. — Afastando-se, olhou-o nos olhos. — Quando chegar lá, tentarei...
— Não conseguirá — respondeu ele, abanando a cabeça. Mas folgo por, ao menos você se encontrar lá. A Alhana e o Porthios...
— A Alhana! O bebê! Não cheguei a perguntar! Como...
— Estão ótimos. Ótimos. Mãe e filho. E, não pode perder isto: se visse o Porthios segurando o bebê, nem o reconheceria.
— Reconheceria — disse Laurana — Afinal de contas, é o meu irmão mais velho. Sempre foi gentil e afetuoso comigo. Foi sim — acrescentou, vendo o olhar de dúvida de Tanis. — Mesmo quando se mostrava casmurro e preconceituoso, eu sabia que tentava me proteger da dor e do sofrimento.
— Não conseguiu — replicou Tanis, cheio de remorsos. — No fim das contas casou comigo e olhe para onde eu te trouxe.
— Trouxe-me para casa, adorado marido — disse Laurana baixinho. — Trouxe-me para casa.
Sentaram-se e falaram por longo tempo, do passado, dos amigos distantes, dos amigos desaparecidos deste mundo. Falaram de Gil, partilharam reminiscências, o amor, esperanças, receios. Falaram do mundo, das perturbações antigas e novas que o agitavam. Sentaram-se e, de mãos dadas, falaram, sabendo, sem proferir palavras, que viviam um momento precioso que em breve acabaria.
Despediram-se. Nessa noite, ele voaria para o norte, a fim de chegar no dia seguinte à Torre do Sumo Sacerdócio. Ela iniciaria naquela manhã a viagem para Qualinesti.
À meia-noite, ela acompanhou-o até à porta. Os servos estavam dormindo. A casa encontrava-se em silêncio e, em breve, vazia, pois Laurana e Tanis haviam concordado em despedir os criados. Sabiam que ambos permaneceriam ausentes por longo, longo tempo. Sobre a casa já pairava o vazio. Os seus passos ressoaram na quietude.
Quando se fossem deste mundo, quem sabe se ecoariam sempre assim. Quem sabe se os seus espíritos, espíritos abençoados de amor e riso, perambulariam pela casa.
Estreitaram-se um contra o outro, murmuram palavras entrecortadas de amor e despedida e afastaram-se.
Olhando para trás, Tanis avistou Laurana postada à soleira da porta aberta, com o luar a banhá-la. De olhos secos, ela sorriu e acenou com a mão.
O marido sorriu e retribuiu o aceno.
Trouxe-me para casa, ecoaram as palavras. Trouxe-me para casa.
As recordações foram-se esvaindo. Tanis ponderou a decisão. Podia voltar para a sua mansão, mas lá se encontraria só — nessa casa vazia, tão vazia e palpitante de ecos. Viu-se a percorrer o assoalho, interrogando-se sobre o que estaria acontecendo na torre, interrogando-se se Laurana estaria em segurança, interrogando-se se Gil estaria bem, interrogando-se se Palanthas já sofrera o ataque, consumido de impaciência por nada saber, precipitando-se para a porta sempre que ouvia cascos a escarvar o solo, culpando-se...
Pedir aos deuses que os guiem.
No pátio embaixo, a Venerada Filha Crysania sentara-se na garupa de Raio de Ouro. Com ar protetor, o tigre com olhos humanos agachara-se ao lado. Olhando-a, ocorreram a Tanis as palavras dela.
Se é que algum me ouve...
O tigre levantou a cabeça e olhou diretamente para Tanis. E, como se o guia lhe tivesse transmitido alguma informação, Crysania pousou no meio elfo os olhos vazios que pareciam ver tanto. Depois, ergueu a mão, como que a abençoá-lo... ou seria um adeus?
A dor, por ter de optar, desapareceu. Tanis sabia agora que já tomara uma decisão. Esta fora assumida há muito, no exato momento em que, na Estalagem da Última Casa, o bastão azul de cristal, a Lua Dourada e a Brisa do Rio haviam entrado na sua vida. Tanis recordou o momento e as palavras memoráveis que dissera na ocasião, palavras que lhe mudaram a vida para sempre.
— Desculpe! Disse alguma coisa? — Sir Thomas olhava o meio elfo com perplexidade e alguma preocupação.
Provavelmente, achava que a tensão era demasiada para o ancião. Com um esgar, Tanis abanou a cabeça.
— Senhor, não ligue. Apenas revivia recordações antigas.
Desviou o olhar de Lady Crysania e pousou-o num ponto da ameia, um ponto assinalado por uma mancha escarlate, um lugar reverenciado pelos cavaleiros, que nunca o pisavam, evitando passar sobre as pedras manchadas de sangue e contornando-as num respeitoso silêncio. Tanis quase conseguia ver Sturm postado ali e o meio elfo soube que fizera a escolha certa.
Tal como então, Tanis repetira as palavras. Não admira que Sir Thomas se mostrasse perplexo. Não se tratava de palavras inspiradas nem estas ecoariam pelas abóbadas da História. Porém, contavam algo a respeito daquele grupo estranho, disparatado e inverosímil de amigos que haviam empreendido mudar o mundo.
— Saímos pela cozinha.
Rindo, Tanis virou-se e regressou ao interior da torre.
2
O regresso.
O julgamento.
A sentença é proferida.
Caia a noite nas planícies da Solamnia, embora fossem poucos os que, no interior do acampamento dos Cavaleiros de Takhisis, dessem por isso. Os exércitos das trevas haviam banido as trevas. As fogueiras estavam proibidas, pois o Senhor de Ariakan não pretendia atear um incêndio nas planícies ressequidas pela seca. Contudo, os Cavaleiros do Abrolho, os feiticeiros de vestes cinzentas, tinham equipado o local com globos de cristal enormes, que derramavam um fulgor cinzento e incandescente. Suspensos dos ramos das árvores, os globos convertiam a noite num dia fantasmagórico.
Mesmo a alguma distância, Steel vislumbrou a luz. O Senhor de Ariakan desdenhara ocultar os seus contingentes nas trevas. Pretendia que o inimigo visse o poder imenso do seu exército e perdesse o ânimo. O próprio Steel, que sobrevoava em círculos o acampamento, montado na garupa do dragão azul, sentiu-se impressionado. Fulgor aterrou num campo lavrado, cujas colheitas se encontravam ressequidas pelo Sol. Os pegadores de dragões que acorreram para ajudar o cavaleiro a desmontar, apontaram-lhe na direção do campo principal e viraram-se para o dragão, a fim de lhe prestarem assistência.
O único desejo de Fulgor era juntar-se de novo aos seus camaradas. A fêmea ouvira-lhes o apelo antes mesmo de enxergá-los e depois de confirmar que só na manhã seguinte Steel precisaria dos seus serviços, levantou vôo em direção ao ponto onde se encontravam reunidos os dragões azuis.
Estes eram a montaria preferida dos Cavaleiros de Takhisis. Os dragões são animais muito autônomos e, em geral, com fraca opinião a respeito da Humanidade. Muitos acham difícil acatar ordens dadas por quem consideram seres inferiores e em relação a certas espécies de dragão, tal revela-se impossível.
Os dragões negros são tortuosos, egoístas e não inspiram confiança, nem sequer àqueles a quem servem objetivamente. Não percebem qual a finalidade de se “sacrificarem” por outra causa que não a própria e, embora possam ser induzidos ao combate, é bem possível que deixem a batalha ao meio para prosseguirem os seus objetivos.
Durante a Guerra da Lança, foram os dragões vermelhos a constituir a montaria preferida de inúmeros comandantes, incluindo o infame Chefe Supremo dos Dragões Verminaard. Enormes, expelindo fogo e pérfidos, os dragões vermelhos fartaram-se das sutilezas do tipo de guerra de Ariakan. Para eles, atacar uma cidade significava queimá-la, saqueá-la, destruí-la e matar tudo o que se movesse dentro desta. O conceito da cidade intacta, dos respectivos habitantes vivos e de boa saúde, ser, para a Rainha das Trevas, de valor mais prático do que um monte de cascalho e de cadáveres putrefatos constituía, para os dragões vermelhos, um anátema. Melhor seria deixar a fumaça dos restos calcinados e o fedor da morte proclamar a glória de Sua Majestade, sem esquecer o brilho do ouro arrecadado nos covis dos dragões vermelhos.