Os cavaleiros prepararam-se para o ataque, mas este não ocorreu.
Passou-se uma hora, e depois outra. Tomaram o desjejum nos seus postos, o pão numa mão, a espada na outra. Dos exércitos aglomerados embaixo, o único movimento perceptível era o dos efetivos que iam engrossando-o.
O Sol foi subindo cada vez mais alto. O calor tornou-se insuportável. A água começou a ser racionada. O ribeiro da montanha que outrora escoava através do aqueduto da torre, estava reduzido a um fio. Os homens postados contra as pedras das muralhas, com as armaduras transformadas numa câmara ardente pelo calor, tombavam e desmaiavam.
— Acho que poderíamos ferver o óleo sem necessidade de acender o fogo — observou Sir Thomas a Tanis, numa das inúmeras rondas de inspeção do Lorde Cavaleiro.
Apontou para um grande caldeirão, cheio de óleo fervente, pronto a ser arremessado ao inimigo. O calor derramado pela fogueira obrigava todos a manterem-se à distância, com exceção dos incumbidos da pesada tarefa de reavivarem as chamas. Estes, que haviam retirado a armadura e as roupas, encontravam-se despidos da cintura para cima e suavam profusamente.
Tanis enxugou o rosto.
— O que você pensa que Ariakan está tramando? Ele está à espera de que?
— Que percamos o ânimo — respondeu Sir Thomas.
— Funciona — observou Tanis com amargura. — Que Paladino nos valha, nunca vi um exército tão grande! Nem sequer durante a guerra, nos últimos dias que antecederam a queda de Neraka. De quantas tropas você acha que dispõe?
— Só Gileano sabe — respondeu Sir Thomas. — É inútil tentar adivinhar. Lá reza o velho ditado: “Cada homem contado em clima de medo é um homem contado ao dobro.” E também não interessa muito.
— Tem razão, meu senhor — concordou Tanis. — Não interessa nada. — Ainda esteve prestes a perguntar ao cavaleiro se achava que a torre iria agüentar, mas concluiu que tampouco valia a pena.
O chamado de um clarim fendeu o ar.
— Aí vêm eles! — exclamou Sir Thomas e apressou-se a assumir a sua posição de comando numa das varandas dos jardins do sexto piso.
Tanis deu um suspiro de alívio e verificou que o mesmo alívio se refletia no rosto dos homens sob o seu comando. A ação era de longe melhor do que a terrível tensão da espera. Os homens esqueceram-se do calor terrível, do medo, da sede e precipitaram-se para os seus postos. Finalmente podiam descontrair-se e deixar as coisas correrem. O destino deles encontrava-se nas mãos de Paladino.
Um estrondo de clarins e um retumbar de gritos de desafio fenderam o ar. O exército das trevas atacava. O sol reluziu nas escamas dos dragões azuis. As sombras das asas dos animais insinuaram-se pelas muralhas da torre, e deslizaram para o coração dos defensores da torre. O bafo de terror do dragão reclamava as primeiras vítimas.
Os dragões prateados e respectivos condutores, armados com as famosas lanças de dragão, levantaram vôo e lançaram-se ao ataque. Uma falange de azuis foi entrechocar com os prateados. Explodiram faíscas. Os dragões azuis atacavam com os seus bafos de fogo. Os prateados retaliavam vomitando nuvens de fumaça gelada que, cobrindo as asas dos inimigos, as congelavam e faziam com que despencassem dos céus.
Tanis admirou-se com o número reduzido de dragões azuis e já suspeitava que este ataque inicial se tratava de uma diversão quando ouviu um grito. Os homens apontavam para oeste.
Vindos dessa direção, avistaram o que parecia ser um enxame de dragões azuis a voar, e que ultrapassava largamente os prateados. Cada um deles transportava no dorso não um, mas inúmeros condutores. Os jovens cavaleiros ficaram olhando, com uma expressão esgazeada e aturdida, mas os veteranos, que haviam lutado na Guerra da Lança, sabiam o que estava por vir. Mal os primeiros dragões azuis sobrevoaram a torre, dos céus começaram a descer sombras aladas e tenebrosas.
— Draconianos! — gritou Tanis, desembainhando a espada e preparando-se para o ataque. — Lembrem-se! Logo que matarem um, arremessem o corpo pela muralha afora!
Os draconianos mortos eram tão perigosos como os draconianos vivos. Consoante a espécie, os corpos podiam transformar-se em pedra, prendendo no interior quaisquer armas aí deixadas, explodir, destruindo os que os destruíam, ou dissolver-se em poças de ácido, letais para quem os tocasse.
Um draconiano Bozac, com as asas hirsutas abertas para amortecer a queda, foi bater contra o topo da muralha que ficava bem defronte de Tanis. O Bozac, que não está adaptado ao vôo, aterrou pesadamente e o impacto deixou-o por uns instantes desnorteado. Porém, logo se recuperaria, e os Bozacs, além de lutadores experientes, também eram fazedores de magia. Antes que a criatura recolhesse as asas, Tanis deu um salto e investiu. A sua espada rodopiou no ar. A cabeça do draconiano separou-se do pescoço e o sangue espirrou. Embainhando a espada, Tanis, antes que o corpo pudesse causar danos, arrastou-o até à muralha e atirou-o borda afora.
O Bozac morto foi cair sobre um grupo de bárbaros que tentavam escalar a muralha. O corpo explodiu quase de imediato, provocando danos consideráveis. Confusos, os bárbaros bateram em retirada.
Tanis não teve tempo para se rejubilar. Um grupo de mamutes puxava um enorme engenho de cerco na direção do portão da frente da torre. Escadas de mão estavam a ser arremessadas contra as muralhas. Tanis ordenou aos arqueiros que disparassem e deu ordens aos cavaleiros que manejavam o caldeirão de óleo para se aprontarem para derramá-lo sobre as cabeças dos que se encontravam lá embaixo. Com sorte, talvez conseguissem incendiar o engenho de cerco. Os homens sob o seu comando obedeceram rapidamente, pois Tanis gozava de grande respeito, era conhecido por ser um cavaleiro em espírito, se não em verdade.
Um mensageiro subiu precipitadamente as escadas e escorregou no sangue do draconiano, quase caindo. Recuperando o aprumo, comunicou a Tanis:
— Mensagem de Sir Thomas, meu senhor! Se o portão da frente tombar, deve se reunir os seus homens e reforçar as tropas que guardam a entrada.
Se o portão da frente cair, pouco restará para guardar, pensou Tanis soturnamente. Mas, abstendo-se de citar o que era óbvio, limitou-se a aquiescer com a cabeça e mudou de assunto:
— Que foi aquele grito que ouvi há instantes?
O mensageiro esboçou um sorriso cansado.
— Uma força de minotauros tentou esgueirar-se pelo aqueduto — respondeu. — Sir Thomas acha que o inimigo pode ter pensado o mesmo, atendendo à seca e a isso tudo. Os nossos cavaleiros aguardavam-nos. Tão depressa não o tentarão de novo.
— Boas notícias — grunhiu Tanis, enquanto empurrava o mensageiro para o lado e atacava um draconiano que por pouco não aterrava em cima do jovem.
Essa pequena réstia de esperança em breve esmorecia. A maré das trevas ia desabando sobre eles e ao longo da tarde foi engrossando. Os cavaleiros deslocavam-se de uma posição para outra. Retiravam-se, reagrupavam-se, tentavam agüentar firmes, apenas para serem repelidos de novo. Tanis lutou até ficar arquejante. Os músculos queimavam-lhe, a mão que segurava a espada estava embotada e dolorida.
E o inimigo continuava a afluir.
Tanis apenas tinha consciência do entrechocar do aço, dos gritos dos moribundos e do respingar do que ele de início julgou tratar-se de chuva.
Afinal, era sangue — sangue de dragão, a derramar-se dos céus.
Pairando sobre o tumulto, ouvia-se o buum, cabuum arrepiante do enorme aríete, que batia qual coração tenebroso, pulsando de vida animosa e terrível.
Registrou-se uma breve calmaria. O inimigo aguardava alguma coisa. Aproveitando a pausa, Tanis encostou-se à muralha, tentando recuperar o fôlego.
De baixo, veio um entrechocar terrível e um grito triunfante. Os portões maciços da Torre do Sacerdócio Supremo cederam.