— Eu... sei — sussurrou, com um sorriso de esguelha. — Você... é um Montante Luzente.
Assumindo uma postura rígida, arquejou e ouviu-se um estertor. O sangue gotejava-lhe da boca. Olhando para lá de Steel, tentou fixar algo que se encontrava por trás do cavaleiro das trevas.
Sorrindo, disse:
— Sturm, honrei a minha promessa.
Tanis suspirou baixinho, como que grato por poder repousar, fechou os olhos e morreu.
— Meio Elfo! — gritou Steel, embora soubesse que não teria resposta. — Tanis...
De repente, Steel deu-se conta da presença de um Cavaleiro da Solamnia, junto de si. O cavaleiro olhava fixamente para o corpo que jazia aos seus pés com uma expressão de desgosto, angústia e tristeza intensos.
O Cavaleiro da Solamnia não usava elmo e estava desarmado. Envergava uma armadura de concepção antiquada. Nada disse, não esboçou nenhum movimento ameaçador. Desviando o olhar, encarou Steel com uma expressão veemente, que era um misto de tristeza e orgulho.
Steel sabia quem era. Não se tratava de um sonho nem de uma visão. E, sendo-o, então Steel materializara-o, dando-lhe uma forma e um corpo.
— Pai! — sussurrou.
Sturm Montante Luzente não proferiu uma palavra. Inclinando-se, pegou no corpo de Tanis Meio Elfo, ergueu-o nos braços, virou-se e, em passos lentos, com gestos comedidos, afastou-se do pátio.
O estrépito de gritos de desafio e de braços a colidir, trouxe Steel à realidade. As portas de ferro, assinaladas com o símbolo de Paladino, escancararam-se. Um novo contingente de Cavaleiros da Solamnia precipitou-se para o pátio, acorrendo em auxílio dos camaradas. Um dos cavaleiros gritou que Tanis Meio Elfo estava morto, outro invocou Paladino para vingar a sua morte e apontaram para Steel.
Desembainhando a espada, Steel avançou ao encontro deles.
6
Os dragões se calam.
A porta se abre.
Alguém aguarda do outro lado.
— Ai, ai! — exclamou Tasslehoff Pés Ligeiros, ao mesmo tempo estupefato e apavorado. E, em tom lamuriento, acrescentou: — Quebrei! Palin, foi sem querer! Estou sempre quebrando coisas. É uma maldição. Primeiro, foi um globo de dragão, depois, o dispositivo de viajar no tempo! Agora, fiz uma boa! Quebrei o Portal que dá para o Abismo!
— Bobagem — retorquiu Palin, mas sem convicção. Ocorrera-lhe o pensamento, alarmante, de que se havia alguém capaz de “quebrar” o Portal, esse alguém seria Tasslehoff.
Mas prevaleceram pensamentos mais lógicos. O Portal fora construído por poderosos magos que haviam recorrido a uma magia tão poderosa que nem sequer um kender conseguiria desvendá-la. Mas admitindo que era verdade, o que dera errado?
Cauteloso, Palin aproximou-se do Portal para examinar melhor e ficou a olhá-lo com ar perplexo.
— Sabe, Palin, já o vi uma vez antes. — Tas fixou o Portal e abanou tristemente a cabeça. — Era lindo, se bem que de uma maneira terrível. Todas as cinco cabeças de dragão tinham cores diferentes e todas guinchavam. E o Raistlin estava cantando e lá dentro viam-se luzes a rodopiar, e só de olhá-las fiquei tonto. E então ouvi uma gargalhada horrível vinda de dentro e... e... — Tas soltou um suspiro e, com ar abatido, caiu de joelhos. — Olha para ele agora.
Palin estava olhando. Realmente, nunca vira o Portal, a não ser na ilusão que Dalamar criara. Mas, tal como os outros magos, Palin estudara o Portal. Este, uma enorme porta oval montada numa plataforma, encontrava-se decorado e guardado pelas cabeças de cinco dragões, cujos pescoços emergiam, serpenteantes, do chão. As cinco cabeças pareciam absortas em meditação: duas de um lado, três do outro. As bocas, abertas, entoavam cânticos infinitos e silenciosos à Rainha das Trevas.
No interior do Portal, reinava uma escuridão que só os olhos da magia conseguiam devassar.
Sempre que a cortina que ocultava o Portal se levantava, as cinco cabeças adquiriam vida e irradiavam luz: azul, verde, encarnada, branca, preta. Matariam e devorariam todo o mago suficientemente louco para tentar a entrada pelos seus próprios meios, como acontecera durante o Teste...
A luz cegou Palin. Pestanejou com esforço e esfregou os olhos, que queimavam. As cabeças de dragão emitiram um fulgor ainda mais forte e ele conseguia agora ouvi-las entoando cânticos.
A primeira: Saltando de trevas em trevas, a minha voz ecoa pelo vazio.
A segunda: Deste mundo para o outro, a minha voz grita por vida.
A terceira: Saltando de trevas em trevas, eu grito. Por sob os meus pés, tudo se torna firme.
A quarta: Tempo que se escoa, detém-me no teu curso.
E por fim, a última cabeça: Pelo destino, até os deuses são repelidos, possam todos eles chorar comigo.
...A visão enevoou-se e lágrimas correram-lhe pelas faces, enquanto tentava divisar o portal através da luz ofuscante. Num desvario, as luzes multicoloridas começaram a rodopiar, girando em torno do vazio imenso, escancarado, tortuoso, que se formava no centro...
— Ora essa, que coisa espantosa! — exclamou Tas de repente. Levantando-se de um pulo, correu para Palin e puxou-lhe a manga. — Consigo ver lá dentro! Palin, consigo ver! E você, consegue?
Palin soltou um arquejo. Conseguia vislumbrar o interior do Portal. Sob um céu cinzento e vazio, espraiava-se uma paisagem plana, cinzenta e vazia.
As cinco cabeças de dragões mostravam-se pardacentas, em silêncio. Nos olhos dos dragões, que deviam lançar chispas, como uma feroz advertência, por esta tentativa de devassarem a sua guarda, refletia-se uma expressão embotada, baça, vazia.
— É o Abismo mesmo — declarou Tas em tom solene. — O reconheci. Isto é, acho que o reconheci. Mas a cor não é a mesma. Não sei se te contei que...
— Contou — murmurou Palin, ciente de que não faria diferença. Tas prosseguiu:
— Pois, já estive no Abismo uma vez e fiquei consideravelmente desapontado. Tinha ouvido tanta coisa: demônios, mafarricos, espíritos e fantasmas, almas atormentadas, que me sentia na verdade ansioso por fazer uma visita. Mas o Abismo não se parece nada com isso. É horrível, vazio e enfadonho. Quase morri de tédio.
Já dizia o ditado, “O céu de um homem é o inferno de outro.” E isso certamente se aplicava ao kender.
— Quase tão enfadonho como por estas bandas — acrescentou Tas, uma frase que, tal como Palin devia ter notado, quando proferida por um kender se tornava de mau agouro.
Contudo, o jovem mago encontrava-se imerso nos seus pensamentos, tentando explicar o inexplicável. O que se passava com o Portal? Tas não parava de tagarelar.
— Mas, me lembro perfeitamente que o Abismo não tinha esta cor parda mas uma espécie de rosa, como uma fogueira ardendo à distância. Foi como Caramon o descreveu. Talvez a Rainha das Trevas decidiu mudar a decoração. — O pensamento alegrou-lhe o semblante. — Poderia escolher um esquema de cores mais atraente... Assim como está, não faz o meu gênero. Contudo, qualquer alteração poderia melhorá-lo.
Tas deu um puxão na túnica, certificou-se de que tinha todos os alforjes e avançou, dizendo:
— Vamos lá dar uma olhada...
Palin mal lhe prestava atenção, ocupado como estava em recordar tudo o que ouvira ou lera a respeito do Portal e do Abismo. Mas a parte da sua pessoa que se mantinha constantemente alerta, quando na presença de kenders — uma faceta relacionada com a sobrevivência que muitos humanos desenvolveram —, fez soar um alarme, interrompendo-lhe os pensamentos.
Dando um salto para frente, batendo, na pressa, contra o estrado, Palin conseguiu agarrar Tas segundos antes do kender se aventurar pelo Portal.