Nuramon olhou para o chão. O que a rainha lhe revelava abria milhares de portas, e ele não sabia em que mundo deveria entrar primeiro. Emerelle tinha razão: era uma viagem. Ela o conduzia por campinas abandonadas.
— E agora, como deve continuar? — perguntou ele. — Eu me sinto sem rumo, como se tivesse me perdido em meu longo caminho.
— Minhas palavras devem apoiá-lo — respondeu ela. — Elas devem mostrar-lhe que você é mais do que acredita, e que pode ser muito mais do que já sonhou.
A rainha falava como se nenhum perigo o ameaçasse; como se dali em diante não fosse haver qualquer obstáculo em seu caminho.
— Eu vou morrer amanhã?
Percebeu Emerelle erguer as sobrancelhas surpresa.
— Nuramon, você sabe que eu não revelaria isso mesmo que soubesse. Nem a minha visão alcança o desfecho das batalhas, já que, em seu curso, o destino se altera muito. Espadas demais, flechas demais e movimentos demais me impossibilitam de ver o fim de tudo. Sequer consigo saber se conseguiremos salvar a Terra dos Albos. Só sei o que tem de ser e devo guardar isso para mim, caso contrário pode não se realizar. Sei o que o move. Tem medo que você e Farodin possam morrer.
— Sim. Noroelle então estaria perdida. Eu renasceria em uma nova vida, e me lembraria do seu destino amargo sem jamais poder fazer algo por ela. Por que você não pode revogar a sua sentença? Por que o feitiço que separará a Terra dos Albos do Outro Mundo precisa ser pronunciado logo após o primeiro?
— Porque eu vi a minha morte no caso de separarmos somente a terra do outro lado da Shalyn Falah. — O olhar de Emerelle mergulhou no vazio. — Uma flecha me atingiria e, assim, o feitiço nunca mais poderia ser pronunciado. Os sacerdotes de Tjured, por sua vez, abrirão outros portais para a Terra dos Albos se não separarmos o nosso mundo do deles. — Piscando, olhou novamente para Nuramon: — Noroelle precisa permanecer onde está para que eu possa viver. Mas não pense que estou agindo assim por egoísmo. Para mim, trata-se somente da Terra dos Albos. A rainha também conhece a compaixão e sofre quando precisa dizer e fazer coisas que contrariam os desejos de seu coração. — Emerelle pousou a mão sobre o ombro dele. — E o meu coração me diz que precisa haver esperança por Noroelle. Por isso, faço agora uma promessa. — Seus olhos brilharam. — Se Farodin e você tiverem de morrer, então confiarei meu trono a Yulivee e darei as costas para a Terra dos Albos no lugar de vocês.
Nuramon contaria com qualquer coisa, menos isso.
— Você faria isso? — perguntou ele.
A rainha fez que sim com a cabeça.
— Por mais que por todos esses séculos eu tenha sido dependente do destino, seria insuportável demais viver no florescimento de uma nova era e vê-los, você e Farodin, renascidos. Também não conseguiria suportar a tristeza de Obilee. Seria uma culpa com a qual não poderia continuar vivendo. Como você pode ver, restam esperanças para Noroelle se nós vencermos amanhã.
Nuramon pegou a mão da rainha e a beijou.
— Obrigado, Emerelle. Isso me tira o medo da batalha. — E olhando para as duas espadas: — Eu gostaria de dar-lhe a espada de Gaomee, porque você tem razão: aqui o círculo se fecha.
— Não. Não por causa da espada. Você precisa ficar com a arma. Ela cumpriu a sua finalidade para a Terra dos Albos, mas para você ela é um símbolo da sua jornada, que ainda não chegou ao fim.
Emerelle deu-lhe um beijo de despedida na testa e, em seguida, se levantou.
— Sobreviva à batalha e encontre Noroelle! Depois disso, você poderá largar a espada, aliviado.
Com essas palavras, a rainha deixou o quarto.
O punhal da rainha
O barulho do acampamento militar chegava até o topo da torre. Os martelos dos ferreiros fabricando armas ecoavam alto. Cavalos relinchavam, inquietos. Junto a algumas das fogueiras ouviam-se cantos. Cada um lutava contra o medo à sua maneira. O dia seguinte decidiria a continuidade da existência da Terra dos Albos.
Farodin apoiou-se no parapeito da varanda e lembrou-se do dia que tinha originado tudo aquilo. Se Guillaume tivesse morrido calmamente em sua casinha perto da torre do templo de Aniscans, talvez sufocado com uma almofada, será que nada daquilo teria acontecido? Farodin teria conseguido fazer isso? Teria sido uma fraqueza sua que levou o inimigo a estar agora diante do coração da Terra dos Albos? Ou será que tudo já começara com a morte de Gelvuun?
Respirou fundo. O ar frio da noite tinha uma mácula. Um hálito de um cheiro familiar demais. O fedor de enxofre. Seria só coisa da sua imaginação? Será que aos poucos estava ficando maluco? Ou será que não tinha vencido a sua luta mais importante? Estaria o devanthar à espreita, como quando o tomaram por morto na caverna de gelo? Estaria ele escondido e, mais uma vez, tecendo uma de suas tramas?
Esforçava-se para reprimir os pensamentos desesperados e simplesmente absorver a imagem do acampamento do exército. Havia barracas montadas até onde o olho alcançava e o fogo ardia até em cima das colinas distantes. Nunca todos os povos da Terra dos Albos haviam ficado lado a lado. Isso também era resultado da morte de Guillaume. Velhos conflitos tinham sido esquecidos... Farodin pensou em Orgrim. Passados cem anos após a batalha marítima sem que a alma do rei dos trolls Boldor ainda tivesse renascido, Skanga proclamou Orgrim soberano de seu povo. Os trolls, que já haviam trazido tantos infortúnios ao povo dos elfos, amanhã estariam perto de Welruun e de Shalyn Falah para lutar lado a lado com eles. Justamente naquele lugar, onde há séculos haviam conduzido uma batalha exasperada uns contra os outros! No lugar onde Aileen morrera! Tudo tinha se invertido no mundo. E tudo parecia possível. Se ele sobrevivesse ao dia seguinte, então conseguiriam chegar a Noroelle.
A mão de Farodin acariciou a pequena bolsa de couro onde guardava o anel de Aileen e a esmeralda de Noroelle. Sentiu a garganta apertar. O fim da busca estava tão próximo! Mas de que maneira os séculos de solidão poderiam ter mudado Noroelle? O que teria restado da elfa que ele um dia tanto amara? E o que havia restado do Farodin que ela um dia conhecera?
Um ruído fez o elfo se virar. A porta para os aposentos da rainha se abriu, e Emerelle saiu para junto dele na varanda. Estava totalmente vestida de branco. Nunca Farodin a vira com esses trajes. Eram simples e sem enfeites. Uma gola alta circundava o seu pescoço. O vestido longo era acinturado e tinha mangas largas.
— Estou contente de poder encontrá-lo aqui mais uma vez — disse, recebendo-o com voz calorosa. — Aqui em cima falamos tantas vezes sobre a morte. — A rainha aproximou-se dele junto ao parapeito de pedra e mirou a campina lá embaixo.
— Para você já passou muito tempo desde a última vez que estivemos aqui. Na época, eu não tinha dúvidas de que tudo o que você ordenava era pelo bem da Terra dos Albos — disse Farodin, pensativo.
No acampamento soaram risos animados de centauros.
— E hoje, o que você pensa a respeito?
— Estou feliz por não ter matado Guillaume. Ele era um homem bom. Se tivesse vivido mais... Talvez tudo isso não tivesse acontecido. — Ele afastou-se um pouco do parapeito e encarou a rainha. Ela parecia tão jovem. Tão bela e inocente. — O que há em mim que a fez escolher-me entre todos os filhos de albos para ser seu carrasco?
— Se uma única punhalada puder evitar centenas de outras mortes, é condenável desferi-la?
— Não — respondeu Farodin, decidido.
— É porque você pensa assim que o fiz meu punhal. Houve tempos em que uma única punhalada poderia ter evitado a partida dos anões ou o êxodo dos elfos de Valemas. Eu tinha medo de que nossos povos pudessem se dispersar aos quatro ventos ou, ainda pior, que nós tivéssemos de resolver conflitos sangrentos por meio das armas. A Terra dos Albos estava arriscada a perecer. Os nossos assassinatos nos livraram disso. Se amanhã nós vencermos, então a Terra dos Albos será forte como nunca, e uma nova era começará. O que significa sacrificar um corpo quando se sabe que a alma renascerá? O que acaba é somente a carne. Para a alma, está reservado um novo começo, que dessa vez talvez não a conduza por caminhos obscuros.