— Duas? — espantou-se Nuramon.
— Sim. Ontem foi uma coisa! Primeiro eu fiz as duas...
— Por favor, Mandred! Poupe-me das suas aventuras amorosas! Você não usa termos agradáveis a ouvidos élficos.
— Você está com inveja porque vou dormir com duas...
— Pare, Mandred! Não precisa dizer o que já foi despertado claramente na minha imaginação e agora está arruinando minha tentativa de pensar em qualquer coisa graciosa.
Mandred e Nuramon riram.
— Você nada sabe sobre a poesia de uma noite a três...
— É melhor cavalgarmos — sugeriu Nuramon.
Tinha sentido falta daquela tagarelice. Queria que Mandred pudesse acompanhar Farodin e ele. Mas com certeza seria difícil arrancar o jarl da cama de suas duas amantes.
Teriam ainda de galopar por algumas horas até a Shalyn Falah. Na metade do caminho, porém, Mandred ficou um pouco para trás. Quando sua égua começou a relinchar, inquieta, Nuramon virou-se para olhar. Seu amigo estava caído na sela!
Felbion correu em direção à égua e parou perto dela. Com as mãos trêmulas, Nuramon tocou o companheiro e tentou endireitá-lo.
— Mandred! — gritou.
O jarl se assustou e olhou inseguro ao redor. Vacilou um pouco e então caiu da sela.
Nuramon pulou do cavalo e virou-o cuidadosamente sobre as costas.
Mandred encarou-o com os olhos arregalados de medo e pressionou a mão sobre a barriga.
— Acho que foi mais do que um arranhão — sussurrou ele, soltando a mão do corpo.
O peitoral da armadura estava intacto. Mas quando Nuramon tateou a larga faixa da cintura, suas mãos ficaram vermelhas de sangue. Atemorizado, o elfo afastou a faixa para o lado e descobriu um furo redondo na armadura. Com as mãos tremendo, soltou as fivelas do peitoral. A camisa estofada de linho também estava ensopada de sangue. Com seu punhal, Nuramon cortou o tecido resistente. O ferimento na barriga de Mandred estava cheio de farrapos fibrosos de roupa. Devia ter sido causado por um daqueles sinistros canos de fogo. Cuidadosamente, Nuramon tateou as costas de Mandred. A esfera não tinha saído do corpo.
— Você não está com dor? — perguntou Nuramon.
— Não — disse Mandred, surpreso. — Eu só estou... tonto.
Mandred havia perdido muito sangue, e morreria se nada fosse feito. Então Nuramon pôs a mão sobre a ferida e começou seu feitiço de cura. Esperou pela dor e ela de fato veio, mas muito mais fraca do que imaginara. Então percebeu que o ferimento realmente estava se fechando sob seus dedos, mas que sua magia não estava tendo nenhum efeito dentro do corpo de Mandred. Ficou com medo. A dor desapareceu, mas Mandred não estava curado. Ter fechado a ferida na barriga não ajudaria. Agora o sangue estava se acumulando dentro do corpo sem conseguir escorrer para fora. Conseguira apenas que a morte chegasse um pouco mais devagar. Mais uma vez, Nuramon reuniu todas as suas forças. Novamente fracassou.
— Mas o que é isso? — perguntou-se.
Algo atrapalhava o seu feitiço; algo que estava dentro de Mandred. Só podia ser a esfera. Teria sido esse o último presente maligno do devanthar para o seu séquito? Talvez esses ferimentos de tiro não pudessem ser curados com a magia dos elfos.
— Eu acho que esse é o fim, Nuramon — sussurrou Mandred. — E que fim para um humano!
— Não, Mandred!
— Para mim você sempre foi... — Seus olhos se fecharam, e ele expirou, esgotado.
Nuramon ficou desolado. A vida de Mandred não podia terminar assim! Tateou para verificar o pulso do amigo. Ainda estava lá, embora a respiração estivesse ficando mais fraca. Com grande esforço, Nuramon ergueu o pesado rei humano sobre Felbion e sentou-se atrás dele na sela. Então cavalgou na direção do acampamento militar à frente do castelo da rainha. Ficava mais próximo que a Shalyn Falah.
Nuramon repreendeu a si próprio. Seria culpa sua se Mandred morresse agora. Durante a batalha, curara suas próprias feridas de forma egoísta, certamente usando muitas forças para isso; forças que lhe faltavam agora que precisava salvar um amigo. Ele nunca se perdoaria se Mandred morresse por incapacidade sua.
Enquanto avançava a todo galope, surgiu ao longe uma luz fulgurante subindo em direção ao céu, que depois se espalhou como um raio. Seria o começo do feitiço pelo qual haviam esperado? Nuramon queria ganhar um sopro dessa magia para a cura de Mandred. Bem no momento do triunfo, o destino atingia a ele e a seus companheiros com toda a força. Só restava-lhe esperar que na Shalyn Falah não estivesse acontecendo nada parecido com Farodin.
Fissuras no céu
Haviam precisado recuar até o meio da ponte. Lentamente, as chamas do fogo de Balbar se apagavam. No caminho havia centenas de soldados da ordem, prontos para o último ataque. Logo que o fogo se consumisse começaria a última investida.
Ao lado de Farodin só restavam Orgrim e Giliath. Todos os outros guerreiros do minguado bando de defensores haviam se recolhido para a muralha da fortaleza do outro lado da ponte.
Desesperado, Farodin ergueu os olhos para o céu. Levaria ao menos mais duas horas até o crepúsculo. Não conseguiriam manter a ponte por tanto tempo. Uma brisa borrifou seu rosto com água e espuma. O trovejar das quedas-d’água tinha algo de tranquilizador. Escorriam pelas rochas como artérias brancas e deixavam a superfície da ponte lisa como um espelho. A Shalyn Falah não tinha mais que dois passos de largura, e nenhum corrimão. Naquele dia, Farodin estava agradecido ao mestre de construção, há tanto tempo esquecido, por sua ponte singular. Mais do que três homens não conseguiriam ficar de pé lado a lado sobre ela. Além disso, quem quisesse atravessá-la não poderia ter vertigens, ou não conseguiria resistir ao chamado do abismo.
— Não dizem que não se deve derramar sangue na Shalyn Falah? — perguntou Orgrim, gritando para sobrepor a voz ao estrondo das cascatas.
Farodin olhou para as manchas de um rosa pálido, que eram lentamente enxaguadas pela água que espirrava.
— Ontem à noite eu fiz a mesma pergunta a Ollowain. Ele me explicou que a pedra da ponte fica tão escorregadia se estiver molhada de sangue que não é mais possível atravessá-la. Também ouvi uma profecia que diz que, no dia em que a pedra branca for manchada de sangue, trevas eternas baixarão sobre ela.
— Eu acho que gosto mais da primeira história — murmurou o troll.
Sangue escorria de uma bandagem em seu braço, mas ainda assim conseguia segurar o escudo que tirara de um moribundo.
As chamas no acesso para a ponte agora só tinham pouco mais que meio metro de altura. Um movimento começou nas tropas sobre o rochedo.
Ouviu-se o estampido de um tiro. Uma esferea de chumbo acertou a pedra branca alguns passos à frente deles.
— Esses idiotas simplesmente não querem admitir que estamos fora do alcance de suas armas — murmurou Giliath.
Ela contou em voz baixa as flechas que havia em sua aljava.
Farodin sabia de cor a que resultado ela chegaria. Treze! Era pelo menos a décima vez que ela contava os projéteis que haviam restado.
Na outra ponta da ponte, um oficial jogou uma pesada capa cinzenta sobre as labaredas e sufocou o fogo. Soldados avançaram com seus canos.
Giliath ergueu o arco. De repente desatou a rir. Os cavaleiros da ordem tinham parado. Acenavam com os braços e tentavam empurrar de volta os guerreiros que chegavam atrás deles.
— Os pavios e a pólvora ficaram úmidos. Agora os canos de fogo não lhes servem para mais nada.
Em meio à confusão no final da ponte, um dos atiradores perdeu o apoio e despencou nas profundezas com um grito horripilante. Os homens finalmente recuavam. No lugar deles, fileiras de espadachins começaram a avançar.
Farodin girou ambas as espadas no ar para soltar os músculos tensos de seus braços. Tateando cuidadosamente, checou mais uma vez o chão escorregadio. A pedra da ponte era polida. Um passo em falso ou um movimento irrefletido e, a exemplo do soldado da ordem, ele despencaria abismo abaixo.
Um raio ofuscante de luz cortou o azul do céu e desfiou-se repentinamente em centenas de faíscas, mas nenhum trovão ecoou no firmamento. Farodin sentiu todos os pelos de seu corpo se arrepiarem. No ponto os raios desvaneceram, restaram finas linhas negras, como se o céu quisesse se despedaçar.