Os soldados da ordem ficaram inquietos. Alguns se ajoelharam e começaram a rezar em voz alta. Uma única voz nítida sobrepôs-se a todas as outras. Entoava um cântico sobre a grandeza de Tjured, o curador de todo o mal. Outras vozes se juntaram a ela. E, por fim, centenas de humanos agora cantavam o hino a seu deus.
Uma névoa negra vazou pelas rachaduras no firmamento.
Farodin recuou. O feitiço da rainha havia começado. A menos de dez passos na frente deles, uma das fendas atingiu a ponte. A névoa escura agora descia do céu em cascatas sinuosas. Mais fissuras surgiam, até onde Farodin conseguia enxergar.
A névoa encobriu a vista para a outra ribanceira. O canto cessou de forma abrupta. Atravessando o desfiladeiro no meio, traçou-se uma parede de escuridão ondulante. A ponte branca esticou-se, formando um amplo arco, e agora desembocava no vazio.
— Então está feito — disse Orgrim, solenemente.
Farodin empurrou a espada de volta na bainha. A guerra estava terminada. Mas ele não se sentia um vencedor.
O pescador
Mandred escutou a canção dos rouxinóis acima dele. Os pequenos pássaros estavam pousados nos ramos mais altos das duas tílias, cujas folhas farvalhavam embaladas por uma brisa leve. Ao seu lado, ouvia o doce marulhar da água de uma nascente. Nuramon tinha razão. Aquele era o lugar mais mágico de toda a Terra dos Albos.
Seu amigo havia lhe acendido uma fogueira e o envolvido nas cobertas dos cavalos. Ainda assim, o frio penetrava fundo em seus ossos, como daquela vez em que subira no rochedo para alertar Firnstayn sobre o devanthar. Teria sido tudo diferente se tivesse conseguido acender o fogo de alerta?
Nuramon havia mandado um mensageiro para Shalyn Falah e outro para a rainha. Mandred conseguira ver o céu escurecer. Então, o primeiro feitiço tinha funcionado. Seu povo estava a salvo. A Terra dos Albos continuaria existindo. Seus fiordlandeses procurariam uma costa escarpada e turbulenta para eles; um lugar que fosse um pouco como a sua pátria perdida. Passara quase a noite inteira anterior à batalha na barraca da rainha Gishild. Havia falado com ela e tentado transmitir-lhe o sonho de uma nova Firnstayn. Acreditava na força dela. Seria uma boa líder para o seu povo.
Mandred girou a cabeça um pouco para o lado e observou seu amigo elfo, que alimentava o fogo com mais um cepo de madeira. Fagulhas luminosas subiam, dançantes, para o céu noturno. As chamas aprofundavam as sombras no rosto de Nuramon. Mandred sorriu. Seu companheiro realmente acreditara que tinha passado a noite anterior com duas belas fiordlandesas.
Os olhos de Nuramon brilharam quando viu o sorriso.
— Em quem você está pensando?
— Nas duas mulheres da noite passada.
O elfo suspirou.
— Acho que nunca vou entender vocês, humanos.
Mandred quase se arrependeu do gracejo. Por um instante, ficou tentado a dizer a verdade ao elfo.
— Eu sinto muito por agora não poder acompanhá-los em sua última viagem.
O jarl sentia um gosto metálico na boca. Não demoraria muito mais. Não sentia dores. Suas pernas estavam como mortas; já não conseguia mais movê-las. As pontas de seus dedos formigavam.
— Não diga a ninguém que uma esfera tão pequena de aço foi o que me matou. Isso não é morte para um herói...
— Você ainda não vai morrer! — protestou Nuramon. — Eu mandei um mensageiro para a rainha. Ela vai conseguir curá-lo. Nós vamos viajar juntos. Como nós fizemos... — ele parou. — Como nós quase sempre fizemos.
— Não seja muito duro com Farodin. Ele é um cabeça-dura obstinado, é verdade, mas também um amigo que atacaria um castelo de trolls totalmente sozinho para... — Mandred suspirou. A fala o enfraquecia. — Onde está o meu machado?
Nuramon foi até os cavalos e retornou com a arma. À luz das chamas, sua lâmina brilhava, dourada.
— Dê-o a Beorn...
Os olhos de Mandred se fecharam. Estava mergulhado na escuridão. Um cavaleiro chegou até eles. Prestou atenção no bater dos cascos para tentar reconhecer algo, mas não podia ver absolutamente nada. Tentou erguer a mão. Nem ela estava mais lá. Sentiu o chão tremer. O cavaleiro agora devia estar bem próximo, e ainda assim não conseguia vê-lo. Assustado, o jarl abriu os olhos. Pôde ver então Farodin ajoelhado ao seu lado. O elfo parecia aflito.
Farodin segurou sua mão.
— Eu estava com medo de que você já tivesse ido, meu irmão de armas. Resista! A rainha virá. — O elfo louro tinha lágrimas nos olhos. Nunca vira Farodin chorar antes. — O seu novo corte de cabelo lhe caiu bem, guerreiro. Com essa careca você parece muito mais perigoso.
Mandred sorriu fraco. Gostaria de ter dado algo aos dois. Algo como lembrança. Mas não possuía nada de valor além do machado.
— Foi bom ter cavalgado com vocês — murmurou ele. — Vocês tornaram a minha vida muito rica.
Novamente a escuridão impenetrável o cercou. Mandred pensou nos átrios dourados dos deuses. Será que tinha conquistado seu lugar ao lado dos grandes heróis? Lá talvez ele encontrasse Alfadas... Seria bom ir pescar com ele. Nunca pudera ensinar isso direito ao filho. Será que havia uma terra do outro lado dos átrios? Uma terra como a dele, com montanhas escarpadas e fiordes cheios de peixes?
Ele precisava falar com Luth! Isso de não pôr mais as mãos em chifres de hidromel também não podia valer nos átrios dos heróis!
De repente, o frio passou. Estava de pé em águas claras que batiam-lhe nos joelhos. Salmões prateados deslizavam lentamente sobre o chão de pedra e nadavam rio acima contra a correnteza.
— Você finalmente chegou, meu velho!
Mandred ergueu os olhos. Sob um carvalho na margem, viu Alfadas. Com um movimento frouxo de pulso ele arremessou a linha de seu anzol.
“Nada mal para um iniciante”, pensou Mandred. “Nada mal.”
Os escritos sagrados de Tjured
Certa noite, o sábio guerreiro Erilgar sonhou com as palavras de Tjured. Estas mostraram a ele que deveria liderar um grande ataque. Assim, pôs em formação imensos exércitos e conduziu-os contra os inimigos. E vejam! Lá estavam eles, os exércitos demoníacos da Terra dos Albos, e os fiéis de Tjured eram minoria. Mas porque a fé era forte dentro deles, eles lutaram valentemente. Os filhos de albos, porém, desde sempre eram pérfidos. Pronunciaram feitiços e fizeram pedras choverem do céu. Lançaram encantamentos sobre os cavalos dos fiéis, fazendo-os ter medo dos inimigos. E fizeram seus mortos ressuscitarem para que jamais fossem vencidos. Apesar de tudo isso, os fiéis mantiveram- se fortes sob a liderança de Erilgar.
Então aconteceu que Erilgar entrou em apuros. A face de Tjured revelou-se para ele e, nos lábios divinos, o comandante leu o que deveria fazer. Rezou uma prece, chamou seus mensageiros e ordenou a retirada. Muitos contestaram essa ordem. Mas Erilgar proferiu: “Tjured não me agraciou com o poder? Ele não me colocou acima de vós?”. Mesmo assim, muitos acreditaram estar mais próximos de Tjured que Erilgar. Então ocorreu o que tinha de ser.
Os fiéis haviam recuado e os incrédulos que ficaram lutavam contra os filhos de albos e os traidores da terra dos fiordes. Assim sucedeu que, naquele dia, o próprio Tjured desceu dos céus e cobriu os filhos de albos com as trevas eternas. Suas terras desapareceram em uma névoa espessa, restando somente o chão que os fiéis pisavam com seus pés. Fez-se que nunca mais se viu um filho de albos, pois nas trevas eternas os aguardavam os albos, os velhos demônios. E estes seguem com o martírio de seus filhos até os dias de hoje.