Quando encontrou o comandante do grupo, ficou imóvel e o encarou. Como os outros, ele vestia um casaco cinza de capuz que escondia o seu rosto, mas que deixava à vista a armadura brilhante.
— Você tem certeza de que entendeu a rainha direito? — perguntou o guerreiro ruivo. — Eu não consigo acreditar.
O comandante ficou ali parado, aparentemente sem reação.
— Se você a tivesse visto enfurecida como estava, não faria essa pergunta. — A voz soava familiar a ela.
— Mas por que ela nos mandou? Noroelle é uma exímia feiticeira, ninguém chega aos seus pés. E entre nós não há ninguém capaz de descobri-la aqui. Devia ter enviado um feiticeiro conosco!
— Porque a rainha não contava que Noroelle fosse se opor ao seu desejo. E isso sem saber qual é a nossa missão.
— Eu não sei se conseguirei cumprir essa missão.
— Devia ter pensado nisso antes de ter feito o juramento.
— Mas... Matar uma criança!
Noroelle se afastou dos guerreiros. Ela não podia acreditar no que acabara de ouvir. Será que tinha se enganado quanto a Emerelle por todos esses anos? Ela nunca se atrevera a pensar que a rainha mandaria seus guerreiros matar uma criança inofensiva. Uma ordem de prisão era o máximo com que havia contado. O que teria acontecido para que Emerelle desse uma ordem como essa? Será que ela fora sempre assim e Noroelle é que não tinha percebido?
A rainha não só tinha expedido essa ordem inédita de assassinato, como também havia perdido a confiança em Noroelle. Ela podia ter esperado até que a feiticeira se apresentasse com seu filho na sala do trono. Foi assim que exigira. E Noroelle o teria cumprido se a soberana não houvesse mandado os guerreiros até sua casa.
Noroelle só não entendia uma coisa: por que ela enviara somente espadachins? A resposta do comandante não bastava. Pois se Emerelle não imaginava que Noroelle se oporia ao seu desejo, por que então enviara seus guerreiros? Havia alguma coisa por trás disso. O que quer que fosse, agora Noroelle sabia o que tinha de fazer.
Ela jamais entregaria seu filho à rainha e seus guardas. Colocaria o bebê em segurança. Só havia um lugar onde Emerelle não poderia encontrar a criança: o mundo dos homens.
Noroelle deixou a floresta e percorreu lentamente as amplas campinas. Pensou em Farodin e Nuramon. Há um ano, quando ambos partiram para caçar uma fera no mundo dos humanos, sua vida não era mais a mesma. Um lobo do grupo veio ferido até a corte da rainha, mensageiro silencioso de um destino terrível. Pouco depois os cavalos dos seus amados também retornaram.
Na ocasião, Noroelle teve de lembrar de seu sonho. Os corpos de seus amados nunca foram encontrados. Todos os que buscaram por eles relataram que a aldeia do filho de humanos Mandred ficara incólume. Se não houvesse sonhado com Nuramon e tido um filho com ele, não acreditaria que estavam mortos.
Noroelle atravessou as terras durante toda a noite, e não foi vista por ninguém. Quando o sol da manhã se ergueu entre as montanhas, chegou a um vale solitário. Carregava o filho num tecido dobrado e cruzado junto ao corpo. Ele permaneceu calmo todo o tempo e até dormiu um pouco.
— Você é um bom menino — disse baixinho, acariciando sua cabeça.
Então sentou-se na grama e amamentou o bebê. Quando estava satisfeito, deitou-o ao seu lado e o observou. Seria uma despedida dolorosa. Mas seria a única forma de salvar o seu filho.
Noroelle levantou-se. O Outro Mundo! Ela cruzaria as fronteiras. Sabia muito sobre as trilhas dos albos, que atravessavam os três mundos e os ligavam uns aos outros, mas nunca pusera em prática esse conhecimento. Os portais fixos, como aquele que seus amados haviam atravessado, não eram um caminho que ela podia seguir. Lá Emerelle certamente já colocara guardas e também seria fácil demais seguir o caminho que ela tomasse, caso escolhesse um portal como esse para a sua fuga. Em lugares de grande poder, como no círculo de pedras de Atta Aikhjarto, cruzavam-se até sete caminhos invisíveis, que entrelaçavam todos os mundos com seus elos mágicos. Ao atravessar um lugar de grande magia como esse, chegava-se sempre ao mesmo lugar. Mas, quanto menos trilhas albas se cruzavam, mais inconstante era o portal para o Outro Mundo. Quando alguém ousava atravessar por pequenas estrelas albas como essas, não era possível dizer em que lugar do mundo dos humanos iria parar. E aqueles que não tivessem grandes poderes mágicos podiam até se tornar vítimas do tempo. Noroelle sabia que precisava ser cautelosa para que isso também não acontecesse com ela. Se cometesse um erro ao dar um simples passo através de um portal, cem anos poderiam passar instantaneamente.
Além disso, precisava se certificar de seguir uma trilha que levasse até o mundo dos homens. O Mundo Partido não era o seu destino, pois não era nada mais que as ruínas de um mundo: restos de campos de batalha nos quais os albos lutaram contra seus inimigos. Esse lugar desconsolado entre a Terra dos Albos e o Outro Mundo era formado só por duas ilhas desertas cercadas pelo vazio. Tais ilhas hoje serviam como locais de exílio, ou de casa para ermitões e solitários. Não levaria seu filho para uma prisão como essa. Por isso viera até este vale.
Noroelle sentiu uma estrela alba onde duas trilhas se cruzavam. Fechou os olhos e concentrou-se em reunir forças. Mesmo que Emerelle conseguisse encontrar seu rastro até ali, seria impossível encontrar sua pista até o Outro Mundo, pensou Noroelle. Ela poderia atravessar por esta estrela uma centena de vezes, e em cada uma delas chegaria a um lugar diferente no mundo dos humanos, porque aqui a ligação entre os dois mundos era fraca. O Carvalho dos Faunos contara-lhe que a ligação era quebrada a cada batida de coração, para na próxima fazer conexão com um lugar diferente. Na sua opinião, essa situação mostrava que a ligação entre o mundo dos homens e a Terra dos Albos foi certa vez tão abalada que ambos os mundos quase chegaram a se separar.
Noroelle olhou para o sol. Ele lhe daria força. Não seria a magia da água, a magia do seu lago, que a ajudaria a abrir o portão, mas sim a da luz. Ela pensou na luz que penetrava até o fundo de seu lago. Pensou no feitiço e então a mudança iniciou o seu curso. Agora não havia mais volta.
O sol encolheu e encolheu. Noroelle olhou em volta. Tudo mudara. As cores tornaram-se mais opacas, tudo parecia áspero e desfocado. As árvores desvaneceram e foram substituídas por troncos novos e sombrios. A primavera tornou-se inverno e os pastos de outono, campos nevados. As montanhas regrediram para colinas suaves. Logo qualquer semelhança havia desaparecido.
Então era esse o Outro Mundo!
Era um lugar sinistro. Noroelle se perguntava o que Nuramon sentira ao pisar nesses campos pela primeira vez. Certamente ficara tão admirado como ela estava agora.
De fato era inverno, mas a magia de Noroelle dava-lhe forças. Ela podia andar descalça sobre a neve sem sentir frio. Mas sem seu calor, aqui seu filho morreria congelado rapidamente. Então começou a procurar por humanos.
Ao longo do caminho, não viu sequer um único bicho. O inverno aqui parecia não permitir nenhuma forma de vida. Vagueou por muito tempo pelo deserto nevado até encontrar o rastro de uma lebre. A visão a acalmou. Continuou seu caminho. Pois, onde havia vida, havia esperança para seu filho.
Procurou por humanos durante muito tempo. Finalmente viu uma fina coluna de fumaça subir por trás do cume de uma colina. Ela seguiu esse sinal e encontrou uma casa que não podia ser mais simples. Pelo menos era o que parecia. Precisava confessar que não tinha experiência com casas humanas. A construção era pequena, feita de madeira. Suas vigas haviam entortado e por isso o telhado estava ondulado.
Noroelle aproximou-se lentamente da cabana. Temia a cada passo que um humano de repente abrisse a porta e saísse dela. Ela não sabia se o feitiço que ainda a tornava invisível também enganaria olhos humanos. Precisava estar preparada para tudo.
Ao chegar perto da porta, prestou atenção e ouviu móveis serem movidos sobre o chão de madeira. Uma voz límpida cantava alegremente. A canção lhe parecia estranha, mas gostava do som.