Mandred voltou-se para Nuramon.
— Como ele fez isso?
O filho de humanos pensava que as habilidades de Nuramon eram maiores que as de fato. Só porque uma vez o elfo se superou para curar Farodin, sempre pedia o seu julgamento sobre tudo, por menos que tivesse a ver com magia.
— Não faço ideia, Mandred.
— Mas eu faço! — intrometeu-se Ollowain. — A magia do filho do demônio é totalmente maligna! Ela pode nos matar imediatamente. Um simples feiticeiro que cura humanos pode nos aniquilar. Agora está claro para mim qual é o perigo que a rainha vê no filho de Noroelle. Precisamos matá-lo.
— Não vamos fazer isso! — disse Nuramon resoluto. — Vamos levá-lo até a rainha!
— Esse falso curandeiro é capaz de nos executar com um mero feitiço! — disse Ollowain. — Está claro para você?
— Sim, eu sei.
— Como você vai obrigá-lo a deixar a cidade?
— Não vou obrigá-lo. Ele virá conosco por livre e espontânea vontade. Ele não sabia o que suas mãos curadoras estavam fazendo com o nosso companheiro. Ele não é o filho do demônio que a rainha esperava.
— Você quer se virar contra a rainha? Ela nos enviou para matá-lo!
— Não, Ollowain. A rainha ordenou a mim que o matasse. Só eu preciso me justificar perante ela.
— Não sei se posso permitir isso — disse Ollowain devagar. — Por que, Nuramon? Por que você mudou de opinião?
— Porque tenho a sensação de que matar Guillaume será um erro desastroso. Isso não resultará em nada bom. Temos que levá-lo para a rainha. Então ela poderá vê-lo cara a cara e decidir a seu respeito. Deixem-me falar com ele. Se eu não voltar até meio-dia de amanhã, então vocês podem matá-lo.
Ollowain sacudiu a cabeça.
— Você quer levar um filho do demônio, cuja magia é fatal a nós, elfos, para a corte de Emerelle? Vá, então! Fale com ele! Nós não vamos vê-lo novamente com vida! Você tem tempo até o crepúsculo de amanhã, e aí vou pegá-lo do meu jeito. Até lá estaremos acampados fora da cidade.
Nuramon buscou apoio nos rostos dos outros. Mas ninguém se opôs a Ollowain, nem mesmo Mandred. Montaram os cavalos ao sinal do mestre da espada. Alfadas levava os cavalos de Gelvuun e Nuramon pelas rédeas.
Farodin foi o último da pequena tropa de cavaleiros a deixar o pátio. Abaixou-se na sela na direção de Nuramon.
— Você tem certeza de que quer correr esse risco? E se acontecer com você o mesmo que ocorreu com Gelvuun?
Nuramon sorriu.
— Então nos vemos de novo na próxima vida.
Visitando Guillaume
Nuramon observou Guillaume por toda a tarde. Ouviu os seus sermões e o viu sepultar o corpo de Gelvuun. Por fim, seguiu o filho de Noroelle pela cidade. Ao fazer isso, teve algumas vezes a opressora sensação de também estar sendo seguido. Mas todas as vezes que olhou ao redor não descobriu ninguém que se comportasse de forma estranha. Havia somente os moradores de Aniscans, ocupados com seus afazeres. Então voltou a prestar atenção em Guillaume e a segui-lo, até que ele chegou à colina do templo e ali desapareceu para dentro de uma pequena casa. Com suas paredes de pedra de alvenaria, ela combinava com a imagem da cidade; se esse era o lar de Guillaume, ele parecia dar muita importância à modéstia.
Nuramon deteve-se e observou a casa da viela defronte dela. Esperava que Guillaume abrisse a janela para deixar entrar os últimos raios de luz do fim do dia. Mas ela continuava fechada. Quando a noite caiu sobre Aniscans, Nuramon viu a quente luz de velas irradiar por suas fendas.
Criou coragem e andou até a porta do milagreiro. Agora só precisava bater. Mas ele não se atrevia a isso. Estava com medo; não de que pudesse lhe suceder o mesmo que a Gelvuun, mas de cometer um grave erro. Ele não conhecia Guillaume e não sabia como ele receberia a verdade. Mas então pensou em Noroelle. Essa era a única esperança de salvar Guillaume da morte e ao mesmo tempo talvez salvar Noroelle — é claro que somente se a rainha reconhecesse que seria um erro matar Guillaume.
Bateu na porta.
Nada se moveu dentro da casa, e Nuramon pensou se deveria bater mais uma vez. Quando erguia o braço, ouviu finalmente passos. Seu coração acelerou. Logo a porta se abriria e o rosto de Noroelle o encararia. Tirou o capuz, para que Guillaume soubesse imediatamente com quem estava lidando.
A porta foi destravada e aberta. Nuramon não se enganara. Era Guillaume. O jovem sacerdote não parecia nada surpreso por ter um forasteiro diante de si. Incapaz de dizer sequer uma palavra, Nuramon observou o rosto do filho de Noroelle. Mas de que forma a expressão de Guillaume se alteraria quando descobrisse tudo sobre sua própria origem?
— Entre, filho de albos — disse o sacerdote com sua voz calma, sorrindo, antes de virar-se. Parecia estar esperando por ele.
A casa de Guillaume era muito simples. A sala em que Nuramon entrou ocupava todo o térreo. Ali havia tudo o que era necessário, do fogão a lenha até o oratório. Só não se via uma cama. Provavelmente o quarto de dormir ficava no andar de cima, ao qual se chegava subindo a escada diante da porta da casa.
— Você veio por causa do seu companheiro — disse Guillaume, sentando-se à pequena mesa no meio da sala. Ali queimava um lampião diante de um prato de madeira ainda com restos de carne. Com um gesto convidativo, Guillaume apontou para uma segunda cadeira na ponta da mesa.
Nuramon sentou-se em silêncio.
O sacerdote afastou o prato para o lado.
— Temo que o seu companheiro já tenha sido enterrado no cemitério. Espero que isso não prejudique o seu renascimento.
— Entre nós, dizem que a alma se solta do corpo dos filhos dos albos no momento da morte — esclareceu Nuramon. — Então, se houver um caminho para as almas que ligue o seu mundo e a Terra dos Albos, Gelvuun já o tomou e está lá, esperando pelo renascimento.
— Então a alma já havia partido quando enterrei o corpo.
— Sim. Mas não é por Gelvuum que estou aqui. Vim por sua causa.
Tais palavras pareceram não surpreender Guillaume.
— Porque eu o matei...
Nuramon ficou perplexo.
— Como você sabe disso?
O curador baixou o olhar.
— Eu soube quando o examinei. Ele parecia ter marcas de estrangulamento no pescoço que correspondiam aos meus dedos. — Ele parou e encarou Nuramon. — Ler as expressões nos rostos dos elfos não é fácil. Não vejo ira nos seus traços. Mas você certamente veio para exigir vingança.
— Não, também não é por isso que estou aqui.
Guillaume olhou-o surpreso.
— Eu só queria saber o que você vê no seu futuro.
— Eu sou alguém numa busca constante a serviço de Tjured. Acredito que este mundo é repleto de tesouros ocultos que só poucos são capazes de encontrar. Eu sei que o poder dos deuses se acumula em determinados lugares. Sou capaz de sentir esses lugares e seguir fluxos invisíveis que se conectam uns aos outros. — Ele claramente falava das trilhas albas, que pensava serem trilhas do seu deus. — Uso esse conhecimento para curar pessoas e pregar a paz. Gostaria que o ódio desaparecesse. Mas depois do dia de hoje parece que o preço disso é muito alto. Que tipo de dom é esse que cura humanos e mata filhos de albos?
— Posso dar uma resposta para isso. Mas pense bem se quer ouvi-la.
— Você sabe alguma coisa sobre a vocação que me permite fazer os meus milagres?
— Eu conheço a origem dela.
— Então você sabe mais que todos os sábios e sacerdotes que encontrei até hoje. Por favor, conte...
— Devo realmente fazê-lo? Pois, se você me ouvir, também vai saber por qual motivo eu e meus companheiros viemos a esta cidade, e porque eu estou aqui cometendo a ousadia de me aproximar de você.
— Você conhece os meus pais? Os meus pais verdadeiros?
— Sim, eu conheço ambos.
— Então fale!
— Você é filho de uma elfa que se chama Noroelle. Certo dia, ela assumiu a mais terrível de todas as penas para proteger a sua vida. — Com essas palavras Nuramon começou a sua narrativa. Falou de Noroelle, de seu amor e do de Farodin por ela, do devanthar e da Caçada dos Elfos, de como Guillaume foi salvo e do exílio de Noroelle. Enquanto isso, observava o semblante de Guillaume ficar cada vez mais sério, e a semelhança com Noroelle desaparecer traço a traço. Terminou com estas palavras: — Agora você sabe quem são seus pais e por que você tem esse poder que cura os homens, mas mata os elfos.